Antes de mais nada, ressalto que este texto emprega o reality show The Voice Brasil como exemplo por ser o que aconteceu mais recentemente e ter enorme repercussão no país. Mas o caso se explica a outros shows de calouros que existem ou já existiram por aí, como “Ídolos”, “Fama”, entre outros.
O burburinho pela vitória de Sam Alves na última edição do The Voice Brasil foi imenso. O cantor, abandonado quando bebê, tem uma bela história de vida. E, inegavelmente, sabe como utilizar sua voz. Mas é fato: Sam Alves vai estar esquecido daqui algum tempo. Não vai demorar.
Os motivos são evidentes para que ele volte a fazer shows intimistas e seja conhecido apenas como “o cara que ganhou o The Voice”, não como “Sam Alves” propriamente dito.
1) A primeira razão é sintomática para qualquer tipo de reality show: as pessoas estão à procura de malabaristas vocais, não de cantores. Um cantor deve empregar sentimento em sua performance. Não deve desafinar, mas a prioridade tem que ser para o feeling da interpretação.
Em programas de calouros, nem sempre é possível que esse sentimento seja empregado por alguns motivos. O primeiro é o mais claro: os cantores querem impressionar. É claro. O público e os avaliadores também querem ser impressionados. Para isso, não necessariamente você precisa de emoção, mas de firulas. É mais ou menos o que também difere um guitarrista técnico de um bom guitarrista: o técnico se exibe e se destaca, mas o bom é o que fica. O bom usa o seu feeling. Nem sempre pode ser compreendido de início, mas demonstra algo genuíno que se perpetua mais facilmente.
2) A função de um reality show musical não é revelar novos artistas. Essa é a maior balela da história do entretenimento, e minha frase já justifica o motivo de não procurarem novos artistas: as pessoas querem se entreter com esses programas.
O Big Brother Brasil não traz conhecimentos aprofundados e muitos o criticam, de forma até burra na minha opinião – não é essa a função dele. Nenhum reality quer colocar ninguém em um auge eterno, e serve para os musicais. É por conta da busca pelo entretenimento que os cantores “malabaristas” se destacam, deixando para trás os que têm feeling. Justamente porque aqueles que priorizam feeling, podem deixar o público entediado em uma transmissão dessas. O que importa é o exagero.
3) Uma razão exclusivamente brasileira: cantores altamente técnicos, exuberantes e, principalmente, exibidos, não faz parte da tradição musical nacional. A MPB, a bossa nova, o samba e a música sertaneja (todos esses gêneros em suas raízes TRADICIONAIS, desconsiderando variações contemporâneas e popularescas) nunca tiveram cantores como Aretha Franklin. Isso é coisa para estadunidense. Sam Alves dificilmente terá mercado por aqui justamente porque grita muito mais do que canta. Assim como outros participantes desses reality shows. Há uma resistência para esse tipo de vocal. Exceções existem, mas são poucas.
4) A interpretação nem sempre é de senso comum entre produção e cantor. O The Voice é o caso mais aparente disso: muitas canções que foram utilizadas pelos cantores ao longo do programa são ideias reaproveitadas de edições do exterior (para quem não sabe, The Voice não existe só no Brasil). Quando não são escolhas reaproveitadas, são músicas escolhidas para fazer os candidatos gritarem. Muitas vezes a opinião do cantor nem é levada em consideração sobre qual canção deve ser utilizada em sua performance. Ninguém que está contrariado, imprime muito sentimento no que faz. Ou seja… berros.
5) Muitos desses cantores malabaristas não se preocuparam em desenvolver uma atividade importantíssima na música: a composição. Ninguém melhor do que o próprio músico para saber o que ficaria legal em sua voz e qual a mensagem ele deve passar, seja em sua interpretação, em sua letra ou em seu arranjo. Não digo que esses vocalistas devem ser multi-instrumentistas. Mas a história revela que grande parte dos nomes mais rentáveis e perpetuados da história da música também interferiam no processo criativo. Os que não precisaram interferir, reservaram-se desse direito por serem excepcionais: coisa que não acontece com calouros desses programas, que precisam do entretenimento televisionado para se destacarem.
Não estou impondo dogmas nem deixando a porta fechada para exceções neste texto. Mas o que descrevi acima é o que acontece em grande parte desses reality shows. É imprescindível diferenciar arte de entretenimento. Ambos têm suas funções, mas não coincidem. A diferença principal é que a arte pode entreter, mas nem sempre o entretenimento é artístico.
Publiquei no Revista Cifras.