A história de “Ace of Spades”, o álbum de maior sucesso do Motörhead

Trabalho de 1980 foi o certo no momento adequado, tal como um movimento bem pensado em um jogo de cartas, tema da faixa que dá título ao disco

Em 1980, o Motörhead estava pronto para estourar. ‘Ace of Spades’ foi o álbum certo no momento adequado, tal como um movimento bem pensado em um jogo de cartas, tema da faixa que dá título ao disco – e a mais famosa da carreira da banda.

Embora tenha sido formado em 1975, o Motörhead demorou um tempinho para ganhar forma. O vocalista e baixista Lemmy Kilmister formou a banda com Lucas Fox na bateria e Larry Wallis na guitarra. O primeiro foi sacado ainda naquele ano para dar lugar a Phil “Philthy Animal” Taylor, enquanto o segundo deixou a formação em 1976 e abriu caminho para “Fast” Eddie Clarke.

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O trio gravou três álbuns – “Motörhead” (1977), “Overkill” (1979) e “Bomber” (também 1979) – até começar a conquistar algum destaque em sua terra natal, o Reino Unido. Os singles das faixas-título dos dois últimos discos chegaram ao top 40 das paradas locais, o que trouxe fôlego comercial a um grupo que já agradava por sua sonoridade híbrida, capaz de unir fãs de heavy metal e de punk rock.

Foi nesse cenário que ‘Ace of Spades’ nasceu, mas havia um ingrediente extra que fez a expectativa por este álbum ficar ainda maior.

NWOBHM e o empurrão ao Motörhead

Foto: reprodução / Facebook

O empurrão que o Motörhead precisava veio da imprensa, ainda que de uma forma que eles não aprovariam. Jornalistas criaram a denominação “New Wave of British Heavy Metal” (NWOBHM) para elencar bandas do Reino Unido que começavam a ter destaque no segmento da música pesada. Em meio a nomes como Iron Maiden, Def Leppard, Saxon e vários outros, estava o trio liderado por Lemmy.

Sempre avesso a rótulos, a banda meio que rejeitava fazer parte desse movimento, pois estava na estrada há mais tempo que os outros colegas. Houve quem colocasse até o Judas Priest, ainda mais antigo, no meio desse balaio, mas isso é conversa para outra hora.

Fato é que pertencer a um movimento de bandas britânicas de som pesado que começavam a ter destaque comercial, inclusive fora do Reino Unido, ajudou o Motörhead a ficar conhecido em meio a centenas de novos fãs daquele tipo de som. O fácil trânsito entre os segmentos do metal e do punk também colaborou.

A gravadora Bronze Records percebeu isso e lançou o EP “The Golden Years”, com material ao vivo da banda, no início de 1980. O registro chegou ao oitavo lugar das paradas do Reino Unido, posição mais alta dos caras até então. Pouco antes, em dezembro de 1979, o selo United Artists, que representaria o Motörhead nos Estados Unidos, tirou da gaveta o álbum “On Parole”, que seria o primeiro da carreira do grupo e foi gravado ainda em 1975, mas não havia chegado a público até então.

O hype estava criado e os fãs logo esperavam por um novo álbum de estúdio do Motörhead. ‘Ace of Spades’, então, chegou às prateleiras – inclusive dos Estados Unidos, sendo o primeiro da discografia oficial a ser lançado por lá – em 8 de novembro de 1980.

Gravações e acertos

Foto: reprodução / Facebook

As gravações aconteceram entre 4 de agosto e 15 de setembro de 1980, nos estúdios Jackson, na cidade inglesa de Rickmansworth. Um processo relativamente rápido, o que não espanta muito, já que a banda sempre foi um tanto minimalista e direta em sua abordagem.

Vic “Chairman” Maile, que já havia trabalhado com Jimi Hendrix e Led Zeppelin, assinou a produção. Era o cara certo no momento, novamente, adequado, pois ele soube como traduzir a sonoridade matadora da banda nos palcos para o estúdio de gravação – talvez o grande problema dos discos anteriores do grupo.

A timbragem obtida por Maile é, certamente, um dos grandes destaques de ‘Ace of Spades’. A sonoridade da guitarra de “Fast” Eddie Clarke impressiona: mesmo usando uma Fender Stratocaster, de tons mais leves, Clarke conseguiu tocar de forma pesada, ainda que sem perder a classe do clássico instrumento. A bateria de “Philthy Animal”, enfim, obteve a abordagem grandiosa e cavalar dos shows, enquanto o baixo de Lemmy “engrossou” e passou a ocupar toda a ambiência rítmica necessária.

Em entrevista à “Uncut Magazine”, no ano de 2015, “Fast” Eddie Clarke relembrou que Vic Maile deu um trato nos caras do Motörhead com seu “jeitinho” relativamente delicado. “Ele não bebia, não fumava e era muito delicado, pois era diabético. Ele tinha que comer seu lanchinho diet às 18 horas. Não conseguíamos pegar pesado com ele, não podíamos sacudir o cara. Ele poderia morrer! Então, tivemos que ouvi-lo”, contou.

Fizeram bem. O resultado desse misto de empenho com ouvidos abertos foi o álbum de maior sucesso da carreira do Motörhead. Há quem diga que ‘Ace of Spades’ seja um disco superestimado, visto que muitas pessoas só conhecem esse trabalho – e tem quem conheça apenas a faixa-título –, mas é difícil contestar tamanho êxito ao dar o play no material.

Com os méritos técnicos de transportar a sonoridade da banda ao vivo para o estúdio, ‘Ace of Spades’ acabou representando a gênese do speed metal. É um trabalho tão influente que influenciou uma série de ramificações do heavy metal, especialmente as mais extremas, seja em peso ou em velocidade das canções.

Ace of Spades, faixa a faixa

Foto: reprodução / Twitter

A já mencionada faixa-título, ‘Ace of Spades’, sintetiza tudo aquilo que os fãs queriam ouvir do Motörhead: letras bem sacadas, vocais peculiares de Lemmy, baixo pulsante (e quase com timbre de guitarra), bateria cavalar na velocidade da luz e guitarra bem postada, como se fosse um “tempero final” de uma pesada equação. Sabemos, entretanto, que não dá para sintetizar esse álbum a apenas sua música de abertura.

Love Me Like a Reptile’, com seu riff matador e cadência irresistível, entra em seguida para nos lembrar que temos um disco repleto de méritos. ‘Shoot You in the Back’ traz temática influenciada pelos filmes de faroeste, que inspirou, inclusive, a icônica capa do álbum. ‘Live to Win’ aposta no groove como seu principal elemento e evidencia como a parceria entre Lemmy e Philthy Animal funcionava bem.

Fast and Loose’, por sua vez, coloca os riffs de “Fast” Eddie Clarke na linha de frente – talvez não tenha sido por acaso a presença do termo “fast” no título da música. ‘(We Are) The Road Crew’, um dos destaques do álbum, apresenta uma homenagem da banda a seus roadies, uma função que o próprio Lemmy ocupou ao trabalhar para Jimi Hendrix e The Nice.

Fire Fire’ sintetiza perfeitamente a gênese do speed metal comentada há alguns parágrafos, enquanto ‘Jailbait’, apesar de sua letra repreensível, serve para mostrar como “Philthy Animal” estava em seu primor técnico. ‘Dance’ evidencia a influência do blues ao trio, enquanto ‘Bite the Bullet’, quase uma vinheta de tão curta, soa envolvente por sua performance autêntica, que parece ter sido captada diretamente de um show da banda.

Outro grande destaque do álbum está próximo ao seu fim: ‘The Chase is Better Than the Catch’, que traz abordagem mais cadenciada e mostra que o Motörhead também sabia compor músicas grudentas, com potencial para emplacar. Uma pena que não tenha saído como single. ‘The Hammer’, ao fim, volta a pisar fundo no acelerador e encerra o álbum tão bem como ele foi iniciado.

Sucesso e futuro

Foto: reprodução / Pinterest

Com um material desse calibre, era de se esperar que o Motörhead amplificasse seus conceitos de sucesso. ‘Ace of Spades’ chegou ao quarto lugar das paradas do Reino Unido e ganhou disco de ouro meses depois, em março de 1981. Além disso, atingiu posições satisfatórias nos rankings musicais do Canadá (29°) e Noruega (37°).

Muito disso veio do single da faixa-título, lançado pouco antes do álbum sair na íntegra. A música que dá nome ao disco atingiu a 15ª colocação nas paradas do Reino Unido, o que levou a banda a ampliar o porte de suas turnês – inclusive uma com Girlschool e Vardis na abertura – e aparecer em programas de TV – até mesmo o infantil ‘Tiswas’.

Lemmy tinha sentimentos mistos no que diz respeito à música ‘Ace of Spades’. Em entrevistas, ele comentava que era grato pelo sucesso da canção e por ter atingido tamanho êxito com um bom trabalho (em vez de um hit pré-fabricado do qual ele seria escravo pelo resto da vida). Por outro lado, apontava que o Motörhead seguiu produtivo depois desse período e que as pessoas também deveriam ouvir os outros trabalhos da banda.

Gostando ou não, Lemmy teve que tocar essa música nos shows do Motörhead até o fim da vida. Nenhum outro álbum de estúdio da banda superou o sucesso de ‘Ace of Spades’. A repercussão foi amplificada com o lançamento seguinte, o ao vivo ‘No Sleep ‘til Hammersmith’ (1981), o único trabalho do grupo a atingir o topo das paradas do Reino Unido – muito disso porque apresentou o repertório dos discos anteriores, ainda desconhecido por muitos.

‘Iron Fist’ (1982), álbum que sucedeu ‘Ace of Spades’, até tentou repetir o mesmo sucesso, mas não conseguiu. Internamente, o Motörhead já estava rachado e desgastado. “Fast” Eddie Clarke saiu da banda, ainda em 1982, por um motivo relativamente tosco: ele não concordou com a regravação de ‘Stand By Your Man’ (Tammy Wynette) em parceria com a polêmica Wendy O. Williams e seu grupo, Plasmatics. Para ele, era como “fugir de seus princípios”.

Sem Clarke, que saiu para montar o Fastway, o Motörhead nunca mais conseguiu repetir o sucesso de ‘Ace of Spades’, embora tenha lançado álbuns muito bons e mantido sua relevância no underground. Vale lembrar que, entre idas e vindas, Phil “Philthy Animal” Taylor deixou o grupo em 1992.

Eles sabiam que havia algo especial com aquela formação, tida como a clássica. Não à toa, houve tentativa de reunião no fim da década de 1990, ainda que forma especial, para apenas um show, sem resultar no rompimento do line-up daquela época – composto por Phil Campbell na guitarra e Mikkey Dee na bateria. Lemmy não topou, pois não queria se indispor com os músicos que já estava na banda há tanto tempo, mas Clarke e Taylor acabaram tocando junto dele em situações esporádicas.

Quis o destino que Lemmy e Phil “Philthy Animal” Taylor morressem com apenas dois meses de distância. O baterista faleceu em 11 de novembro de 2015, enquanto que o frontman nos deixou em 28 de dezembro daquele ano. “Fast” Eddie Clarke partiu deste mundo em 10 de janeiro de 2018.

Nenhum deles ficou por aqui para entender o tamanho do 40° aniversário de ‘Ace of Spades’, um dos álbuns mais importantes do heavy metal. Mas os três sabiam, lá fundo, ainda que pudessem refutar, que essa foi a obra-prima da carreira deles.

Motörhead – ‘Ace of Spades’

Lemmy Kilmister (vocal, baixo)
“Fast” Eddie Clarke (guitarra)
Phil “Philthy Animal” Taylor (bateria)

1. Ace of Spades
2. Love Me Like a Reptile
3. Shoot You in the Back
4. Live to Win
5. Fast and Loose
6. (We Are) The Road Crew
7. Fire, Fire
8. Jailbait
9. Dance
10. Bite the Bullet
11. The Chase is Better Than the Catch
12. The Hammer

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Igor Miranda
Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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