5 discos fundamentais da carreira de Roberto Carlos

Artigo especial é assinado por Pedro Henrique Frasson Barbosa, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e grande fã do Rei

O artigo especial a seguir apresenta cinco discos fundamentais da carreira de Roberto Carlos, um dos artistas mais populares da história da música brasileira. O texto é assinado por Pedro Henrique Frasson Barbosa, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Estabelecido como artista de reconhecimento nacional desde 1965 e internacional nos anos seguintes, Roberto Carlos tem mais de 100 trabalhos lançados, entre álbuns, EPs, compactos e compilações.

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Transitando entre o rock da jovem guarda, o soul, a música romântica, a bossa nova, a MPB e mesmo o samba, Roberto lançou pelo menos um disco por ano entre o início da década de 1960 e meados dos anos 1990, colocando cerca de 500 músicas na praça – grande parte delas escritas junto do parceiro Erasmo Carlos.  

Em todos esses anos de vida pública, muito mais do que os discos de Roberto fizeram sucesso. Seus relacionamentos, problemas, dramas e peculiaridades acabaram em certos momentos ganhando mais evidência que sua produção musical, mesmo que esta evidentemente nunca tenha deixado de tocar.

A separação entre o artista e sua obra sempre é problemática e isso não é diferente no caso do “Rei”, um compositor que basicamente canta sua intimidade. Até por isso, o texto a seguir aborda mais a biografia musical de Roberto Carlos e menos as peculiaridades que tanto o caracterizam.

Como estratégia para contornar o grande volume de sua produção, me proponho neste espaço a apresentar cinco discos da obra de Roberto Carlos que merecem destaque. Os trabalhos estão entre os anos de 1967 e 1977, período em que, na minha opinião, encontram-se os lançamentos de maior qualidade do artista.

Como em qualquer lista, escolhas difíceis precisam ser feitas, deixando de fora uma série de coisas interessantes. O mesmo vale para esta limitada seleção.

Antes de partir para a lista, um (não tão) breve histórico sobre a carreira de Roberto Carlos até a chegada de 1967, o que ajuda a entender o contexto de suas produções mais importantes a partir do ano em questão.

Histórico

Relembro a casa com varandas, muitas flores na janela

Nascido na cidade de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, em 19 de abril de 1941, Roberto Carlos se interessou cedo pelas músicas ouvidas no rádio da família. Ali, havia grande diversidade de estilos: música caipira, romântica, sambas-canções e marchinhas de carnaval.

Ainda garoto, aos 9 anos, apresentou-se pela primeira vez na Rádio Cachoeiro, cantando um bolero – mais especificamente, “Amor y Más Amor”, de Bobby Capó. Voltou diversas vezes à estação nos anos seguintes, o que lhe ajudou a obter reconhecimento como artista local.

Decidido a tentar a sorte na carreira musical, Roberto mudou-se, com 15 anos de idade, para o Rio de Janeiro. Instalou-se provisoriamente na casa de parentes na cidade de Niterói.

Após um primeiro ano difícil, sem nada conseguir, obteve contato com a chamada Turma da Tijuca, que era composta por nomes como Jorge Ben Jor, Tim Maia, Erasmo Carlos, Renato e Paulo Cesar Barros (futuramente Renato e seus Blue Caps), Lafayette, Wilson Simonal e Luiz Ayrão, todos rapazes apaixonados por rock, cinema e a cultura jovem americana.

De acordo com Paulo Cesar de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos:

“O triunvirato de consumo cultural daqueles garotos era formado basicamente por discos, filmes e revistas em quadrinhos americanos. E disso o que eles reproduziam eram as canções. Não se pode dizer que faziam rock de garagem porque todos cresceram sem automóvel e entre pessoas que também não tinham. Eles faziam rock de rua e, como ficavam até tarde tocando, frequentemente provocavam a ira de alguns moradores […].” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 49)

Desses contatos surge, em 1958, a oportunidade de Roberto se apresentar no programa Clube do Rock, recém-criado por seu conterrâneo Carlos Imperial na TV Tupi. Ele era introduzido nessa atração como o Elvis Presley brasileiro, enquanto Tim Maia era o Little Richard nacional. Nos meses seguintes, Wilson Simonal e Erasmo Carlos também foram recrutados por Imperial, que, sem saber, estava com quatro futuros grandes nomes da MPB em mãos.

O programa teve relativo sucesso e Roberto Carlos foi escalado inclusive para abrir o show de Bill Haley no Brasil, em abril do mesmo ano. A apresentação acabou não acontecendo devido ao artista ter menos de 21 anos, o que tornava sua presença no local ilegal (além do rock ser visto na época como coisa de gente que não prestava).

O programa Clube do Rock chegou ao fim junto do ano de 1958, mas naquele momento Roberto já estava embalado por outra sonoridade: a bossa nova. Do mesmo modo que falam Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Marcos e Paulo Sérgio Valle e Edu Lobo, Roberto conta que:

“Nunca tinha ouvido nada parecido antes. A forma de ele cantar, a colocação da voz, a emissão, a afinação, a divisão, tudo ali era perfeito. Quando ouvi João Gilberto, eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 68)

Dali em diante, o cantor largou o rock e passou a tentar a carreira como crooner de bossa nova nas casas de shows cariocas. O primeiro trabalho que conseguiu nesse sentido foi na Boate Plaza, do hotel Copacabana, aos 18 anos. Roberto cantaria nesse local durante nove meses, tendo como companheiro de palco o pianista João Donato.

Foi nesse período em que Roberto reencontra Carlos Imperial, que conclui, mesmo assustado com tamanha mudança, que era a hora do artista gravar profissionalmente. Começa aí a peregrinação de Roberto atrás de uma oportunidade.

Após meses de procura e várias negativas, o primeiro registro de voz de Roberto Carlos sai em 1959, em um disco de 78 rotações lançado pela Polydor. Trata-se de “João e Maria / Fora do Tom”, com duas canções de bossa nova – a primeira de Carlos Imperial e a segunda, de Imperial e Roberto. Sem sucesso, no ano de 1961, outro compacto é lançado, dessa vez pela gravadora Columbia (em São Paulo), com as músicas “Canção do amor nenhum” e “Brotinho”, um samba e uma bossa nova, ambas composições de Imperial.

Novamente sem sucesso, ainda em 1961, Roberto lança “Louco por você”, seu primeiro álbum, pelo mesmo selo, que atira para várias direções: samba, bolero, bossa nova e rock.

Mais uma vez, fracassa em vendas. “Louco por você” desde então foi renegado pelo artista, que não o considera seu disco de estreia.

Parei na contramão (e me dei bem)

A partir de 1962, ocorre uma mudança na direção da Columbia, que passa a se chamar CBS. Com o gerente geral Evandro Ribeiro também como diretor artístico, são aplicadas diversas reformulações – e demissões.

Roberto, que havia lançado um compacto e um disco sem sucesso, estava próximo de perder o emprego, não fosse o maior nome da casa quando o assunto era rock, Sérgio Murilo, que estava batendo de frente com Ribeiro em diversas ocasiões. Murilo foi colocado para escanteio e Roberto passou a receber a atenção da gravadora como o principal artista de rock da casa.

Depois de dois compactos lançados no ano de 1962, ambos obtendo uma pequena circulação em algumas radios do Rio de Janeiro, Roberto Carlos põe no mercado em 1963 aquele que seria seu primeiro compacto de relativo sucesso no Rio de Janeiro e em algumas regiões do nordeste: “Splish Splash” e “Baby, meu bem”. A primeira música é uma versão de Erasmo Carlos para a canção de mesmo nome do roqueiro norte-americano Bobby Darin; a segunda, uma composição de Helio Justus e Titto Santo.

Após o sucesso regional de seu single “Splish Splash”, Roberto entra em estúdio e grava aquele que considera seu primeiro disco, de nome também “Splish Splash”, lançado em 1963.

O álbum possui dois estilos: um mais próximo a “Louco por você”, romântico, e outro que se assemelha mais aos lançamentos que Roberto soltaria no mercado nos anos seguintes, como “É proibido fumar”.

As gravações foram conduzidas por músicos de diversas origens: o conjunto orquestrado da CBS, a banda recém-contratada The Youngsters com uma sonoridade rock anos 1950, e os então adolescentes da banda Renato e seus Blue Caps, que participam apenas na faixa “Parei na contra mão”, o sucesso do disco, responsável por fazer Roberto Carlos finalmente emplacar um hit em São Paulo.

Muda o ano, entra 1964, e Roberto Carlos lança seu segundo disco, “É proibido fumar”. Das 12 canções do trabalho, quatro são assinadas por Roberto e Erasmo Carlos, além deste último assinar duas versões em português para músicas estrangeiras, como o carro-chefe do álbum: “O Calhambeque”.

Neste álbum, há mais participação dos músicos do The Youngsters e menos da turma da orquestra da CBS, o que muda consideravelmente a sonoridade em relação ao lançamento anterior.

Três jovens membros da equipe técnica fazem grande diferença na produção de “É proibido fumar”. São eles: Jairo Pires, Eugenio de Carvalho e Manoel de Magalhães Neto. Na época, eles já gostavam de rock e se interessaram em experimentar diferentes maneiras de gravar as canções. Paulo Cesar de Araújo registra que:

“Eles entravam no estúdio com discos importados debaixo do braço para ouvir e tentar reproduzir com o máximo de qualidade. O som da CBS tinha muito eco na tentativa de imitar a sonoridade dos discos da RCA americana, que era considerada espetacular. Todos queriam obter aquela sonoridade dos primeiros discos de rock’n’roll, como o eco de ‘Heartbreak hotel’, com Elvis Presley, ou o de ‘Be bop a lula’, gravação de Gene Vincent. ‘A gente ouvia atentamente cada som da guitarra, o som do baixo, o som da bateria e depois íamos lá procurar fazer igual. A gente experimentava bastante para chegar o mais perto possível daquela sonoridade do rock’, afirma Jairo Pires.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 244)

É preciso levar em conta que, no início da década de 1960, ninguém no Brasil tinha experiência com gravações de rock. Os produtores e chefões das companhias entendiam pouco do assunto porque não escutavam o estilo. Na hora das gravações, essas diferentes referências apareciam – e é por isso que a presença de jovens que ouviam rock operando as cabines de gravação foi tão importante.

Todavia, mesmo com esses avanços, Roberto Carlos não estava completamente satisfeito com a sonoridade de sua música. O The Youngsters fazia um rock muito aproximado dos anos 1950, simbolizado pelo uso do sax tenor, que não agradava o artista.

O ano de 1965 foi definitivo na carreira de Roberto: foram lançados vários singles, dois álbuns e o programa Jovem Guarda, atração da TV Record que elevou Roberto, Erasmo Carlos, Wanderléa e outros artistas associados ao status de ídolos nacionais. Mais que um movimento musical: a jovem guarda pautou as vestimentas, os cortes de cabelo, o uso de gírias específicas, o consumo de produtos e mesmo um novo modo de se fazer televisão, muito mais descontraído e conectado ao público jovem. Foi a beatlemania brasileira.

Logo no início de 1965, Roberto soltou um compacto simples com as canções “História de um homem mal” e “Aquele beijo que te dei”, esta última possuindo como novidade o característico órgão do músico Lafayette Limp, que se tornaria uma marca registrada do iê iê iê brasileiro.

Em março, o artista entrou em estúdio e gravou aquele que seria seu primeiro trabalho completo de 1965: “Roberto Carlos canta para a juventude”, basicamente um disco de rock, com 3 canções assinadas por Roberto e Erasmo e as outras por diversos compositores, entre eles Getúlio Côrtes (irmão de Gerson King Combo), que teria no futuro inúmeras de suas composições gravadas por Roberto Carlos.

Esperava-se que o sucesso do disco fosse a faixa “Os sete cabeludos”, mas a canção mais conhecida tornou-se “Não quero ver você triste”, uma música de declaração à moda dos populares programas de rádio da época. “Parei… olhei” e “Garota do Baile” foram outras músicas do disco que tiveram grande circulação.

Em agosto de 1965, inicia-se o programa Jovem Guarda, exibido ao vivo nas tardes de domingo. A atração surgiu no mesmo modelo de outros shows exibidos na TV Excelsior e pela própria TV Record, que nas quartas-feiras trazia o programa O Fino da Bossa, apresentado pelos então jovens Elis Regina e Jair Rodrigues. Levou um tempo, mas a partir de novembro daquele ano, o programa Jovem Guarda virou a sensação do momento.

Roberto Carlos gravou seu segundo álbum do ano no fim de 1965. Lançado como “Jovem Guarda” devido ao nome do programa que estava estourado, as canções de maior sucesso do álbum são “Lobo mau”, “Mexerico da Candinha”, “Pega ladrão”, “Não é papo pra mim” e, é claro, a maior de todas: “Quero que vá tudo para o inferno”, faixa responsável por transformar Roberto Carlos em artista reconhecido de norte a sul do Brasil e mesmo em alguns países da América Latina, como Uruguai, Paraguai e Argentina.

Há, na carreira de Roberto, um “antes e depois” desta canção, composta para seu amor da época, Magda Fonseca. Caetano Veloso comenta que:

“‘Quero que vá tudo pro inferno’ foi o fenómeno de massa mais intenso que eu vi na minha geração.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 157)

            O cantor Zé Ramalho lembra:

“[…] ver a polícia (em 1964) correndo atrás de estudantes na rua, carros revirados, ônibus incendiados e ‘Quero que vá tudo pro inferno’ tocando no rádio. Era um cenário louco, um apocalipse danado.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 142)

            Wanderléa, nativa do movimento de sucesso da jovem guarda, comenta:

“Para a época, aquilo foi realmente uma coisa muito forte, agressiva. É como se hoje fosse lançada uma música com o refrão ‘quero que vá tudo pra p*ta que o pariu’.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 158)

Paulo Cesar de Araújo apresenta o depoimento de outros artistas a respeito desta canção, como Wando, Raimundo Fagner, Djavan e Nana Caymmi, que dão uma dimensão do fenômeno que foi “Quero que vá tudo para o inferno”. Por tudo isso, o álbum seguinte de Roberto Carlos, lançado no fim de 1966, foi cercado de muita expectativa.

Duas canções que compõem “Roberto Carlos 1966” saíram antecipadamente numa coletânea da CBS: “É papo firme” e “Esqueça”, sucessos instantâneos. Quando o disco completo foi lançado no fim do ano, “Negro gato”, “Querem acabar comigo”, “Namoradinha de um amigo meu” e “Eu te darei o céu” emplacaram nas rádios. Roberto e Erasmo Carlos assinam quatro faixas do trabalho, Getúlio Cortez é autor de duas e Luiz Ayrão consegue colocar sua segunda música em um disco do artista.

Neste trabalho, o órgão de Lafayette está ainda mais presente, ao passo que a participação do The Youngsters é dividida com Renato e seus Blue Caps e os membros da banda de apoio de Roberto, que na época contava com três integrantes. É um disco de iê iê iê muito próximo à primeira fase dos Beatles, inclusive a capa do trabalho, claramente inspirada em “With the Beatles”, de 1963.

Eis que no final de 1966 chega a hora de gravar um álbum – e, enfim, partimos para a lista com os cinco discos fundamentais da obra de Roberto Carlos.

Cinco discos fundamentais de Roberto Carlos

“Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” (1967)

Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” representa um marco na carreira de Roberto Carlos por apresentar uma série de diferenças em relação aos trabalhos anteriores. Lançado em 1967, ano do declínio do movimento e programa Jovem Guarda, o álbum apresenta as composições mais maduras e sonoridade rica e complexa, devido à ampliação da banda de apoio, o acompanhamento da orquestra da CBS e a inédita condução de dois diferentes maestros.

Das 12 faixas que compõem o álbum, quatro são assinadas por Roberto, sete por outros compositores e apenas uma é fruto da parceria de Roberto com Erasmo Carlos: “Eu sou terrível”, que abre o trabalho, sintetiza o espírito da época ao falar de rebeldia e velocidade. “Quando” (com destaque à sua bateria) e “E por isso estou aqui” são as composições de Roberto que alcançaram sucesso na época, além de “Como é grande o meu amor por você”, escrita para a namorada Nice e que mudou para sempre a vida de todas as mães (eu sei que já você cantou essa música na escola).

O ambiente musical nos anos 1960 funcionava de maneira bastante diferente de hoje. Roberto gravava em estúdio com os músicos do Renato e seus Blue Caps e, ao vivo, tocava com uma banda de quatro membros: o guitarrista Gato, o baixista Bruno, o baterista Dedé e o tecladista Wanderley, que compunham a RC4.

Todos esses músicos participam de “Roberto Carlos em Rítmo de Aventura”, além de três outros solicitados por Roberto: um trompetista, um saxofonista, um trombonista e, é claro, o órganista Lafayette. É possível conferir essa maquinaria em funcionamento em quase todo o disco, mas especialmente em “Eu sou terrível”, “Você não serve pra mim” (guitarra e baixo matadores) e “O sósia”.

Além da ampliação do conjunto, para “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” foram chamados de volta os “velhos músicos” da orquestra da CBS. Os elementos orquestrais estão ausentes a partir do segundo disco de Roberto, pois pensou-se na época, de 1964 em diante, que o rock simples e direto feito pelo cantor não combinava com a sonoridade antiquada de violinos, harpas e flautas. Tudo muda a partir de 1966, quando na Inglaterra os Beatles e os Rolling Stones inseriram filarmônicas inteiras em seus trabalhos.

Para a gravação de “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, portanto, voltaram os músicos da CBS e entram em cena os maestros José Pacheco Lins e Alexandre Gnattali. Antes deste trabalho, os discos de Roberto eram “acertados” no momento da gravação, algo feito em cima da hora. A partir deste lançamento de 1967, as músicas passaram a ser arranjadas e trabalhadas previamente pelos maestros. O resultado dessa mudança está em faixas como “E por isso estou aqui”, “Folhas de outono”, além da já mencionada “Como é grande o meu amor por você”, que antecipam uma presença cada vez maior da orquestração nos álbuns do artista.

O ano de 1967 acabou com o artista lançando, além do disco, um filme de mesmo nome, dirigido por Roberto Farias. Símbolo da consagração do cantor na época, a produção cinematográfica foi também um passo a mais naquilo que caracterizava a juventude dos anos 1950: a velocidade, os quadrinhos, o rock and roll e o cinema.

“Roberto Carlos” (1969)

Após lançar o álbum “O Inimitável” em 1968, em que explora as influências da black music pela primeira vez, Roberto Carlos lançou em 1969 seu trabalho intitulado apenas “Roberto Carlos”. O material apresenta, entre outros gêneros, as primeiras canções no estilo romântico que seria consagrado pelo artista na década seguinte.

Soma-se a isso uma espécie de reconhecimento perante a MPB, que durante anos criticou duramente todo o movimento jovem guarda, além de uma valorização por parte dos artistas associados ao tropicalismo, como Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia.

Embora músicas românticas já estivessem presentes em outros lançamentos de Roberto, a formatação que estas canções adquirem no disco de 1969 introduzem uma pegada que durante mais de uma década seria desenvolvida pelo artista: a ênfase no violão dedilhado, nos arranjos de cordas e metais e refrães fortes muitas vezes cantados a plenos pulmões.

As flores do jardim de nossa casa”, que não um rock, foi colocado justamente na aberta do álbum – algo até então inédito na carreira de Roberto. A bela faixa, aliás, foi composta com inspiração no diagnóstico do filho, que nasceu com um glaucoma e, ainda bebê, precisou fazer várias cirurgias nos olhos.

“Aceito seu coração” e “Quero ter você perto de mim” seguem praticamente essa mesma fórmula. Outras faixas, embora também românticas, possuem a sonoridade jovem guarda pela qual Roberto já era conhecido. São elas: “Do outro lado da cidade”, “Sua estupidez” e “Não tenho nada a perder”.

Já as canções “Nada vai acontecer” e “Não vou ficar” – esta última uma encomenda de Roberto a um ainda desconhecido Tim Maia – foram gravadas sob clara influência da soul music americana, dando continuidade ao que já tinha aparecido no álbum anterior e que continuaria nos discos de Roberto até pelo menos 1971.

E há, é claro, “As curvas da estrada de Santos”, música bastante importante na carreira de Roberto e Erasmo Carlos – e que merece ser descrita à parte.

Nos anos 1960, a jovem guarda era rejeitada por uma boa parte dos músicos da chamada MPB engajada, como Geraldo Vandré e Elis Regina, que diziam que o estilo era de baixa qualidade e não era autenticamente nacional. O ápice desta negativa foi a Passeata contra a guitarra elétrica, ocorrida em julho de 1967, onde Vandré e Elis, junto de Edu Lobo, Zé Keti, Gilberto Gil, entre outros, marcharam pelo centro de São Paulo carregando um cartaz com os dizeres “Frente única da música popular brasileira”. O assunto dá o que falar até hoje, ainda mais porque no ano seguinte tudo seria diferente com a chegada do Tropicalismo.

Em 1969, “Se você pensa” (“daqui pra frente, tudo vai ser diferente”), composição de Roberto e Erasmo, ganhou regravações de Elis Regina, Maysa, Gal Costa e Wilson Simonal. Em 1970, quando o disco de 1969 já era sucesso no Brasil, Elis novamente gravou uma faixa da dupla – agora, “As curvas da estrada de Santos”, sem dúvida a canção mais emblemática do trabalho.

Quando ouviu Elis Regina apresentando a música ao vivo em um show no Canecão, um emocionado Erasmo Carlos lembrou e se convenceu:

“Chorei adoidado mesmo […] a gente é legal, p*rra! Taí a prova de que nós somos legais”. (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 244)

“As curvas da estrada de Santos” também tem uma relação especial com Caetano Veloso. Roberto Carlos estava de passagem por Londres em 1969 quando visitou Caetano e a esposa Dedé e cantou a música, até então inédita.

“Roberto Carlos chegou acompanhado de Nice e Wanderléa. ‘Você está gravando? Tem músicas novas?’, perguntou Caetano. ‘Tenho, vou cantar uma música para você ouvir, você vai gostar’. Ele pediu o violão e tocou ‘As curvas da estrada de Santos’. Caetano ficou sentado no chão ao lado do sofá em que Nice estava com seu longo vestido rodado preto. ‘Essa canção extraordinária, cantada daquele jeito por Roberto, sozinho ao violão, na situação em que todos nos encontrávamos, foi algo avassalador sobre mim’, lembra Caetano. ‘Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: bobo, bobo.’” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 384)

Este encontro entre Roberto Carlos e Caetano Veloso é também digno de destaque porque gerou, além de uma amizade de décadas, pelo menos duas músicas de sucesso – ambas do trabalho lançado em 1971, que apresento na sequência.

“Roberto Carlos” (1971)

Lançado no fim de 1971 simplesmente como “Roberto Carlos”, este é o álbum mais importante da carreira de Roberto. Aqui, são consolidadas as mudanças iniciadas nos trabalhos anteriores, como a orientação mais romântica, o acompanhamento da orquestra da CBS, além de pela primeira vez o artista gravar nos Estados Unidos.

Este evento inédito garante à produção uma sonoridade cristalina, nada comparado aos lançamentos prévios do cantor. Sucesso de público e de crítica sintetizado na canção “Detalhes”, “Roberto Carlos 1971” dá um passo a mais também na consagração do compositor entre seus pares do universo musical. Das 12 canções do álbum, sete são assinadas por Roberto e Erasmo Carlos e seis por outros autores diversos.

Seguindo a linha dos trabalhos de 1969 e 1970, Roberto escolheu também uma canção romântica como faixa de abertura: “Detalhes”, composição sua e de Erasmo. Tornou-se a música mais conhecida do artista, a única que nunca saiu de seu repertório, reconhecível logo nas primeiras notas da introdução de flauta.

Sua letra trata dos pequenos fragmentos da história de um casal que não está mais junto, os pequenos detalhes que compõem uma grande história de amor.

O próprio Roberto é categórico quando analisa a canção:

“Nessa composição, consegui dizer tudo o que queria e da forma que queria dizer. Às vezes, a gente não consegue chegar a esse ponto numa música. A gente quer dizer uma porção de coisas sobre determinado tema, mas o máximo que consegue é chegar perto. Já em ‘Detalhes’ eu realmente disse tudo o que queria daquele tema, da forma que queria e com os detalhes que eu queria citar na música. Eu e Erasmo fomos realmente muito felizes.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 472)

A faixa seguinte é “Como dois e dois”, uma daquelas composições surgidas do encontro entre Roberto Carlos e Caetano Veloso em Londres no ano de 1969. Com o estreitamento dos laços, Caetano comenta:

“Fiz esta canção para Roberto Carlos e pensando em Roberto Carlos. Eu queria ouvi-lo dizendo aquelas coisas. Embora com uma letra enigmática, ‘Como dois e dois’ é o Roberto mesmo no momento da ditadura e ele podendo ser uma afirmação do Brasil. Era um modo de ele explicitar o compromisso real dele. E era enigmático porque estava para além dos compromissos que queriam que Pelé e ele assumissem de tomar atitudes de esquerda convencional, o que eu sempre achei uma estupidez.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 387)

O título e a frase desenvolvida ao longo da música são referências à obra “1984”, do escritor inglês George Orwell. Caetano Veloso escreveu a canção enquanto estava fora do país devido à perseguição que sofreu da ditadura militar brasileira – nada era mais sugestivo da situação que o compositor estava enfrentando.

Destaca-se na gravação a guitarra rítmica e os backing vocals que acompanham Roberto durante boa parte da canção.

A outra composição resultante do encontro de Roberto com Caetano é “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. Roberto conta da seguinte maneira:

“‘Só tive oportunidade de conhecer realmente Caetano em Londres. Ele me emocionou tremendamente e as coisas que disse são coisas que só um cara excepcional pode dizer’, afirma Roberto Carlos, que ficou muito tocado com aquele encontro e com o fato de ver Caetano Veloso fora do Brasil naquela circunstância. O cantor voltou para casa com aquilo na cabeça, e comentava com Erasmo Carlos; ‘pôxa, como pode um negócio desses? Caetano é uma pessoa tão legal, tão sensível’. Depois de alguns dias pensando nisso, compôs a canção ‘Debaixo dos caracóis dos seus cabelos’.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 385)

A história de ‘Debaixo dos caracóis de seus cabelos’ foi revelada apenas nos anos 1990. Até então, apenas Caetano Veloso, que a relatou num programa de televisão, sabia da origem da composição.

Além de “Detalhes”, outras quatro músicas fizeram grande sucesso. São elas: “De tanto amor”, “Amada amante”, “A namorada” e “Se eu partir”. As duas primeiras são composições de Roberto e Erasmo. “De tanto amor” possui inspiração em Dolores Duran, uma das artistas prediletas de Roberto. Como faz a cantora em diversas gravações, o artista começa esta canção com a exclamação “ah…”, passando a descrever o término de um relacionamento embalado pelo desolado e grandioso arranjo de Jimmy Wisner.

“Amada amante”, por sua vez, era uma antiga composição que o cantor escreveu para a sua esposa da época, Nice. Diante da impossibilidade de oficializar seu casamento com a companheira devido a não existência de divórcio no Brasil até então, Roberto protesta: “esse amor sem preconceito, sem saber o que é direito, faz as suas próprias leis”.

Já “A namorada” e “Se eu partir” são criações de outras pessoas. A primeira é da dupla Maurício Duboc e Carlos Colla e a segunda de Fred Jorge, conhecido compositor do período jovem guarda. É dele a clássica “Estúpido Cupido”, de Celly Campello, além de outras composições para Roberto, como a pesada “Não adianta nada”, lançada no disco de 1973.

“De tanto amor” e “Traumas”, esta última composição de Roberto e Erasmo, são as canções mais melancólicas do disco. Os versos de “Traumas, por exemplo, apontam “delírio da febre que ardia, no meu pequeno corpo que sofria, sem nada entender”, falando sobre o acidente sofrido por Roberto na infância.

Finalmente, as canções “Todos estão surdos” e “Eu só tenho um caminho” encerram a chamada fase soul da carreira de Roberto, pois a partir deste trabalho de 1971, o estilo quase que desapareceu do catálogo do artista.

A primeira é uma das canções temáticas de Roberto e fala genericamente da paz mundial. Sem citar nominalmente, a música menciona de Jesus Cristo a John Lennon, passando pelos hippies. O groove do baixo, dos vocais de apoio e os metais tornam a produção grandiosa. “Eu só tenho um caminho”, composição de Getúlio Côrtes (que sempre garantia uma composição nos discos de Roberto nessa época), parece dar o recado de que aquele novo caminho trilhado pelo artista seria definitivo.

“Roberto Carlos 1971” foi o primeiro disco de Roberto a vender mais de um milhão de cópias. Nos anos seguintes esta marca seria igualada e superada diversas vezes, como nos álbuns lançados em 1972, 1977, 1978, 1980 e 1981.

“Roberto Carlos” (1975)

Após os três álbuns de sucesso seguidos ao disco de 1971, em que músicas como “O Divã”, “Como vai você”, “Amigos, amigos”, “Proposta”, “O Portão” e “É preciso saber viver” ganharam as multidões, Roberto Carlos apostou em um romantismo ligeiramente menos declarado em seu álbum “Roberto Carlos” de 1975. A sonoridade deste trabalho é mais próxima à MPB e o arranjo de algumas canções, como “Olha”, “Inovidable” e “Existe algo errado” chegam a ter elementos de jazz.

Gravado parte no Brasil e parte nos Estados Unidos, o material tem 12 faixas: cinco assinadas por Roberto e Erasmo Carlos e as outras por diversos compositores, entre eles Benito di Paula, Raimundo Fagner e Antonio Carlos Belchior.

“Quero que vá tudo para o inferno”, primeiro sucesso nacional de Roberto, lançado 10 anos antes, ganha uma releitura em “Roberto Carlos 1975”. É esta a faixa que abre o álbum, de certa maneira sugerindo uma atualização do artista. O arranjo dessa nova versão é adequado aos padrões setentistas do compositor, com a participação da orquestra, uma maior sobriedade vocal e a ausência do inconfundível órgão de Lafayette.

Além da faixa que abre o álbum, “Seu corpo” e “El Humahuaqueño” também fizeram bastante sucesso. A primeira é uma canção semelhante a “Proposta”, do disco de 1973, em que pela primeira vez há um tom mais sensual-sexual em uma composição de Roberto e Erasmo.

Já “El Humahuaqueño” é a gravação de Roberto de uma popular canção de autoria do argentino Edmundo Zaldivar. Ouvindo a versão de Roberto, a primeira coisa que me vem à cabeça é “El condor pasa (If I Could)”, versão em inglês de Simon e Garfunkel para a conhecida música peruana, lançada pela dupla em 1970 no álbum “Bridge Over Troubled Water“. Roberto sempre foi um artista atento aos lançamentos internacionais e certamente conhece o trabalho dos músicos ingleses.

Olha”, “Inovidable” e “Existe algo errado” são as canções de mais bom gosto desse disco de 1975 – e todas são românticas. Dessas três, apenas a primeira é composição de Roberto e Erasmo Carlos (feita pelo telefone) e é um dos hits do álbum. O destaque aqui fica para a emotiva interpretação de Roberto e o estilo de produção semelhante ao dos trabalhos da turma da bossa nova.

“Inovidable”, música do compositor cubano Julio Gutiérrez, é talvez uma das mais elegantes canções da carreira de Roberto Carlos, com seu piano balançado e a caprichosa guitarra que atravessa toda a faixa. “Existe algo errado” é a mais melancólica das citadas e se sobressai pela belíssima combinação de cordas, além de uma brilhante performance do pianista que infelizmente não consegui identificar, nem mesmo na contracapa do LP.

Os arranjos das três faixas são assinados por Chiquinho de Moraes e as gravações foram realizadas em São Paulo. Mesmo em estúdios no Brasil, o artista conseguia obter uma qualidade de nível internacional.

“Desenhos na parede” e “Elas por elas” foram gravadas nos Estados Unidos. Nenhuma delas é composição de Roberto ou Erasmo Carlos: são das duplas Beto Ruschel (compositor de “Madastra” do álbum “O Inimitável”) e Cezar de Mercês (da banda O Terço) e dos irmãos Isolda e Milton Carlos, respectivamente. A primeira destaca-se pela maneira como a percussão e a voz de Roberto, dobrada, roubam a cena. A segunda, por sua vez, trata de um romance malsucedido. Sou da opinião de que piano elétrico deixa qualquer música elegante e a teoria se confirma nesta canção, que lembra as teclas dos álbuns de Maria Bethânia.

A canção “Amanheceu” é criação de Benito di Paula, que já fazia sucesso na época. Foi a segunda vez que Roberto gravou o sambista friburguense, que teve sua canção “Quero ver você de perto” incluída no trabalho de 1974. A música não tem nada de samba, mas a letra é a cara de Benito di Paula, o sambista mais romântico que existe.

Na época, Marcos Lázaro, empresário de Roberto entre 1968 e meados dos anos 1990, agenciava também as carreiras de Benito, Ronnie Von e Wando, o que facilitou os contatos. Não à toa, todos os três tiveram suas canções gravadas por Roberto.

“Mucuripe”, por sua vez, é de autoria de dois na época relativamente desconhecidos compositores: Raimundo Fagner e Antonio Carlos Belchior. A canção, espécie de livro de memórias tristes em forma de música, foi batizada com o nome de um porto existente na cidade de Fortaleza.

Roberto resolveu gravar a faixa mesmo após Elis Regina e Fagner já a terem adicionado em seus discos no passado. De acordo com Paulo Cesar de Araújo, a partir de entrevista realizada com Fagner:

“A produção de Flávio Cavalcanti intermediou o encontro entre o jovem compositor que iniciava a carreira e o ídolo maior da música popular brasileira. Levado ao camarim de Roberto Carlos, Fagner se surpreendeu quando o cantor lhe disse: ‘Bicho, canta Mucuripe aí pra mim’. E surpresa maior ele teve ao cantar os primeiros versos: ‘As velas do Mucuripe/ vão sair para pescar/ vou jogar as minhas mágoas/ pras águas fundas do mar…’ -, pois as lágrimas começaram a brotar dos olhos de Roberto Carlos. ‘Aquilo pra mim foi uma injeção de cavalo. Porque eu estava começando a carreira, tinha vinte e poucos anos. Na hora eu nen disse nada. Fiquei engasgado vendo um filme que jamais pensei que seria real. Aquilo tudo que eu tinha imaginado, de repente estava ali real na minha frente’, lembra Fagner.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 465)

Em seu inevitável estilo erudito, Belchior pensava:

“[…] a gravação de Roberto Carlos foi mais definidora do sentido do classicismo desta canção do que as outras gravações, incluindo a de Elis Regina. A gravação do rei foi a que deu o remate final a esta música como uma música definitiva do lirismo […].” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 465)

“Além do horizonte” e “O quintal do vizinho” são canções um tanto singulares dentro de “Roberto Carlos 1975”. A primeira possui um animado e despretensioso arranjo de Jimmy Wisner, maestro norte-americano que conduziu todo o disco de 1971, além da guitarra com wah wah, algo até então não percebido nos discos de Roberto por este que vos escreve.

Já “O quintal do vizinho” é, na opinião de Erasmo Carlos, demasiadamente simples, sendo este justamente o motivo que cativou o parceiro Roberto. A faixa possui uma levada tão tranquila e serena que é quase uma canção infantil (o que certamente dá trabalho para fazer).  

Como fazia desde o ano de 1970, uma temporada de shows foi organizada no Canecão, em São Paulo, ao longo de 1975. Algumas canções de seu trabalho de fim de ano foram antecipadas já nessas apresentações, sempre lotadas.

“Roberto Carlos” (1977)

Roberto Carlos é do tipo que emplaca pelo menos uma música por álbum. No caso de seu disco “Roberto Carlos” de 1977, não foram uma nem duas, mas pelo menos quatro canções de sucesso: “Amigo”, “Falando sério”, “Cavalgada” e “Outra vez”.

Das 12 composições do disco, cinco são de autoria de Roberto e Erasmo Carlos. As outras sete são criações de artistas como Caetano Veloso, Maurício Duboc, Carlos Colla e Isolda Bourdot, que à época já tinham canções lançadas na voz do artista.

Diferentemente dos trabalhos anteriores, “Roberto Carlos 1977” foi inteiramente produzido nos Estados Unidos e arranjado pelos maestros norte-americanos Jimmy Wisner, Al Capps e Ben Lanzarone, sem o brasileiro Chiquinho de Moraes.

“Amigo” é a canção que abre o disco, algo inédito em pelo menos dois sentidos. Primeiro, porque não é nem um rock nem uma música romântica iniciando um trabalho. Trata-se de uma composição temática que fala de amizade, mais especificamente da relação entre Roberto e Erasmo Carlos.

Além disso, “Amigo” é uma das poucas parcerias entre Roberto e Erasmo em que um fez inteiramente a letra (Roberto) e o outro fez solitariamente a melodia (Erasmo). Quando decidiu homenagear o companheiro, Roberto precisou manter a letra em segredo.

De acordo com Paulo Cesar de Araújo, Erasmo Carlos ouviu a canção dias depois de ela ter sido gravada nos Estados Unidos:

“Quando a fita começou a rodar e entrou aquela abertura instrumental, Erasmo percebeu que estava diante de uma canção forte, grandiosa. E ao ouvir as primeiras palavras cantadas por Roberto Carlos, ‘Você meu amigo de fé/ meu irmão camarada/ amigo de tantos caminhos/ e tantas jornadas…’, ele não se conteve e começou a chorar. Aquela mensagem só podia ser para ele. Erasmo chorou no início, no meio e no fim da música. ‘Choro até hoje. É a música que as pessoas escolhem quando querem me homenagear, e eu choro sempre’ […].” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 274)

Junto de “Detalhes”, “Outra vez” é possivelmente a música mais conhecida de Roberto Carlos, amplamente requisitada nos shows, mesmo não sendo uma composição sua, mas de Isolda Bourdot. Os versos iniciais “você foi o maior dos meus casos” são emblemáticos do cancioneiro de Roberto, do mesmo modo como “Emoções”( “quando eu estou aqui eu vivo esse momento lindo”) ou “Como é grande o meu amor por você” (“eu tenho tanto pra lhe falar”).

“Outra vez” é a primeira composição que Isolda fez sozinha para o artista, e não em parceria com seu irmão Milton Carlos, que morreu em um acidente de carro em 1976.

“Falando sério”, “Cavalgada” e “Nosso amor” são as canções românticas mais belas do trabalho. As duas primeiras possuem arranjos lindíssimos, mas arrebatadoras mesmo são as letras. A primeira é uma composição de Maurício Duboc e Carlos Colla, veteranos colaboradores de Roberto, e possui um dos versos mais famosos do artista:

“É bem melhor você parar com essas coisas/ de olhar pra mim com olhos de promessas/ depois sorrir como quem nada quer […]”

“Cavalgada”, por sua vez, composição de Roberto e Erasmo, segue a linha de “Seu corpo” (do álbum “Roberto Carlos 1975”) ao sutilmente tematizar na letra uma relação sexual. O refrão dessa canção é, na minha opinião, um dos mais fortes e carregados entre as composições de Roberto e Erasmo Carlos.

Na gravação, os oito primeiros compassos do refrão soam primeiramente sem nenhuma letra. Apenas após a atmosfera ser criada é que Roberto solta a voz:

“Estrelas mudam de lugar/ chegam mais perto só pra ver/ e ainda brilham de manhã/ depois do nosso adormecer; E na grandeza desse instante/ o amor cavalga sem saber/ que na beleza dessa hora/ o sol espera pra nascer”

“Nosso amor” é, entre as três faixas acima mencionadas, a que possui meu arranjo preferido. A composição é do estreante Mauro Motta e de Eduardo Ribeiro, pseudônimo de Evandro Ribeiro, diretor geral da CBS e produtor dos discos de Roberto Carlos entre 1963 e 1983, que preferiu assinar com outro nome. Décadas depois, em 2010, o grupo de rap paulistano A286 sampleou* “Nosso amor” em sua faixa “Sem País das Maravilhas”, do álbum “Exército Dos Excluídos”, de 2010.

“Solamente una vez” e “Ternura” são duas versões que Roberto faz de músicas estrangeiras. Na primeira, composição do mexicano Agustín Lara, o artista canta em espanhol. “Ternura”, por sua vez, acabou sendo traduzida e virou uma versão de “Somehow It Got To Be Tomorrow Today”, originalmente gravada por Pat Woodell em 1965. Esta canção já havia sido lançada por Wanderléa em 1968, quando foi trilha sonora do filme Juventude e Ternura.

Roberto Carlos gravou mais uma composição de Caetano Veloso em seu disco de 1977, a segunda das três que o artista tocaria. Trata-se de “Muito Romântico”, música que possui um dos arranjos de metais mais grandiosos da carreira de Roberto, além de uma das linhas de baixo mais criativas de Paulo Cesar Barros, do Renato e seus Blue Caps, que desde os anos 1960 ocupava o posto de baixista nos discos de Roberto.

A respeito da canção, Paulo Cesar de Araújo, a partir de uma entrevista com Caetano Veloso, conta que este:

“[…] telefonou para Roberto Carlos dizendo que estava pensando em fazer uma canção sobre as patrulhas ideológicas e que gostaria que ele gravasse. ‘Fiz ‘Muito romântico’ para Roberto Carlos, mas pensando em nós. Porque aí Roberto Carlos foi porta-voz’. Lançada no álbum de Roberto Carlos de 1977, no ano seguinte a canção foi também gravada por Caetano no seu LP ‘Muito’. ‘E a defesa do artista e de seu modo de ser, contra aqueles que tentam botar rédeas e trilhos no seu caminho’ […].” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. 2006. Roberto Carlos em Detalhes, p. 274)

“Não se esqueça de mim”, “Sinto muito minha” e “Pra ser só minha mulher” são três outras canções românticas de “Roberto Carlos 1977”. As duas primeiras são composições de Roberto e Erasmo Carlos, enquanto a terceira é de Ronnie Von e Tony Osanah.

Dessas, “Não se esqueça de mim”, com um belo arranjo de cordas de Jimmy Wisner, foi a que mais tocou. As letras das duas outras faixas tratam de problemas de relacionamento e o destaque fica com a marcada presença do contra baixo de Paulo Cesar Barros, que a bem verdade brilha ao longo de todo o álbum.

Finalmente, “Jovens tardes de domingo” aborda o período do programa Jovem Guarda. A faixa, que se inicia com uma introdução ao estilo “Festa de arromba”, música de Erasmo Carlos lançada em 1965, logo se transforma numa nostálgica descrição daquele período do ponto de vista de seus dois maiores personagens: Roberto e Erasmo Carlos, adultos já há muito tempo.

“Roberto Carlos 1977” acumula hoje a marca de duas milhões de cópias vendidas, o tornando um dos discos de maior sucesso do artista. 

Conclusão: “o moço velho

Roberto Carlos tem mais de 50 anos de carreira. As pinceladas deste texto contemplam uma parte muito pequena de sua obra, que desde 1977 foi ampliada por 23 álbuns de músicas inéditas, diversas coletâneas, versões em espanhol e italiano, além de lançamentos em outras mídias.

Muitos desses trabalhos têm grandes canções; outros, nem tanto. De toda maneira, estradeiro como sempre foi, Roberto Carlos fez apresentações em todos os cantos do Brasil e divulgou sua música à exaustão.

Em sua obra “Por que ler os clássicos” (1981), Italo Calvino fornece mais de uma dezena de definições a respeito do que são autores e livros clássicos. Uma delas é a seguinte:

“é clássico aquilo que tende a relegar as atualidades a posição de barulho de fundo […]”.

Penso que a definição vale não apenas para a literatura, mas também para a música. Nesse sentido, não há cantor no Brasil que seja mais clássico que Roberto Carlos – isto é, que tenha sido mais barulho de fundo, tocado ininterruptamente por todos esses anos. Na casa da avó ou da tia, no especial de fim de ano da TV Globo, nos programas de rádio que dedicam horas de sua programação apenas ao repertório do compositor, nas datas comemorativas e festas religiosas… Roberto Carlos é música de caminhoneiro, taxista, empregada. É o disco de vinil velho e empoeirado que todo mundo tem em casa.

Toda essa presença no cotidiano brasileiro – nesse Brasil profundo, para fazer uso das palavras de Caetano Veloso – fez de Roberto e Erasmo Carlos talvez a dupla mais regravada da música nacional. Suas canções receberam versões de Maria Bethânia a Jota Quest, de Nando Reis a Cauby Peixoto, de Agnaldo Timóteo a Skank, de Ivete Sangalo a Nara Leão, de Lulu Santos a Babado Novo, de Daniela Mercury a Raça Negra.

A longa lista contempla uma grande diversidade de estilos – como foi, basicamente, a formação musical de Roberto. Um artista diverso fazendo música para um Brasil diverso.

Texto de Pedro Henrique Frasson Barbosa, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

 * Anos antes, o conjunto também paulistano Trilha Sonora do Gueto lançou as canções “U Preço da Glória” e “Istô Di Volta” no álbum “Us fracu num tem veiz”, de 2003. A primeira música usa um sample de “Ternura” e a segunda se vale de uma colagem de “Cavalgada”.

** Um agradecimento especial a Camilo Leão, amigo e, quando o assunto é Roberto Carlos, também consultor.

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Pedro Henrique Frasson Barbosa
Pedro Henrique Frasson Barbosa
Pedro Henrique Frasson Barbosa é graduado em Ciências Sociais (UFPR), mestre em Antropologia (UFPR) e doutorando em Antropologia (USP). Se aventura, de vez em nunca, no jornalismo musical, dando especial atenção às histórias, detalhes, mediações, bastidores e controvérsias.

3 COMENTÁRIOS

  1. parabéns pela reportagem, muito completa e didatica, em ritmo de aventura e os auto intitulados de 71 e 77 são classicos absolutos da musica brasileira, merecem ser descobertos pela geração da musica biodegradavel de spotify

    • Concordo com a lista do cara, mas sabe como é, os fãs acabam ouvindo depois vão sempre agregando os demais discos, como o de 1978, 1979, 1980, 1981, o de 82 com Maria Bethania, o de 1984. O disco em inglês de 1981. O disco ‘Ao Vivo 1988, o MTV acústico 2001.

  2. É interessante e lamentável que um artista.como ele ainda não tem uma discografia completa e comentada no Wikipedia, não há artigos bons como esse comentando seus álbuns e gravações.
    Pesquisando no google qual é o álbum maia vendido de sua carreira, por exemplo, não há resposta.

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