A definição mais utilizada para rivalidade é um confronto baseado em animosidade, com uma ameaça constante de violência verbal ou física entre as partes. Treta. Mas e as rivalidades amigáveis? Aquelas relações construídas a partir de respeito mútuo, amizade e um desejo constante e recíproco de superar o outro. São capazes de mover montanhas – e no caso dos Beatles e dos Beach Boys, mais especificamente de Paul McCartney e Brian Wilson, mudar a música pop como conhecemos.
Quando ainda eram novatos
Os dois grupos surgiram mais ou menos na mesma época no início da década de 1960, tornando-se artistas pop de muito sucesso.
Os Beach Boys foram os responsáveis pela criação do chamado som da Califórnia, com suas harmonias perfeitas e canções sobre garotas, carros e surfe. Os Beatles eram o carro-chefe da chamada British Invasion, uma onda de bandas britânicas que rejuvenesceram o rock’n’roll depois de um período marcado pelas perdas de algumas de suas figuras mais importantes, como Buddy Holly.
À medida que ambos foram avançando na carreira, já havia pistas de ambições maiores por parte de ambas as bandas. O som baseado no rock’n’roll de Chuck Berry dos primeiros discos foi dando lugar a canções mais elaboradas, com mudanças de acordes pouco ortodoxas e temáticas mais maduras. Mesmo assim, ainda não havia necessariamente uma rivalidade entre Beatles e Beach Boys, separados por um oceano.
Isso mudou em 1964, quando os Beatles chegaram à América.
“Toda canção era perfeita”
Quando os Beatles tocaram no Ed Sullivan Show em 1964 e “I Want to Hold Your Hand” chegou ao primeiro lugar nos Estados Unidos, Brian Wilson, líder dos Beach Boys, sabia que os dias do grupo estavam contados se não evoluíssem. Ao Daily Mail, ele contou:
“Eu adorei. Era como um choque passando pelo meu sistema. Eu imediatamente sabia que tudo havia mudado.”
Inspirado pelos ingleses, ele buscou expandir o som dos Beach Boys, introduzindo elementos orquestrais influenciados pelos arranjos de Phil Spector, apelidados de Wall of Sound. O primeiro single usando esse método foi “I Get Around”, que se tornou a primeira canção do grupo a atingir o topo das paradas americanas.
Enquanto isso, os Beatles estavam experimentando arranjos mais acústicos, inspirados pelo folk de Bob Dylan. Os discos “A Hard Day’s Night” e “Help!” demonstravam o apetite experimental do grupo e a capacidade coletiva deles de introduzir elementos incomuns à música pop da época com destreza.
Em 1965, os Beatles lançaram “Rubber Soul”, um disco considerado marco da música pop na época por sua sofisticação e maturidade. O grupo estava incorporando elementos da música indiana, instrumentos acústicos e arranjos mais barrocos a algumas composições.
Em sua biografia, “I Am Brian Wilson”, o compositor americano falou sobre a experiência de escutar “Rubber Soul” pela primeira vez:
“‘Rubber Soul’ é provavelmente o melhor álbum já feito. Saiu em dezembro de 1965 e me mandou direto para o banco do piano. Não eram só as letras e melodias, mas a produção e as harmonias deles… quase música como arte.”
Influências não-musicais
Quando falamos do pop dos anos 1960, principalmente de Beatles e Beach Boys, é impossível não discutir a influência de drogas nos dois grupos. Maconha e LSD estavam em voga e o efeito das substâncias provocou não só maior experimentação em termos de sonoridade, mas também introspecção nos artistas, com letras mais emocionalmente complicadas e temas mais adultos.
Brian Wilson em particular via sua mente se expandindo exponencialmente para acomodar suas ambições. Cansado de turnês e da fórmula singles mais filler dos álbuns dos Beach Boys até então, ele começou a planejar o que seria sua obra-prima.
“All Summer Long” foi um disco em que os conceitos estavam ainda se arrumando, com Wilson se trancando em um estúdio em Los Angeles com a Wrecking Crew – grupo lendário dos melhores músicos profissionais da cidade – enquanto o resto da banda fazia turnê.
Tudo cairia no lugar para o disco seguinte dos Beach Boys, “Pet Sounds”. Uma obra-prima do pop, o álbum influenciou inúmeros artistas ao longo dos anos com seus arranjos quase barrocos e tom melancólico.
Um desses influenciados foi Paul McCartney, cantor e baixista dos Beatles que foi quem levou mais a sério a “competição informal”. Ele declara “God Only Knows” sua música favorita até hoje, como ele descreve à BBC:
“‘God Only Knows’ é uma das poucas canções que me deixa em prantos toda vez que ouço. É apenas uma canção de amor, mas é feita de maneira brilhante. Mostra o gênio de Brian Wilson. Eu já até a toquei com ele e digo que durante a passagem de som fiquei emocionado.”
Em 1966, os Beatles estavam prestes a lançar “Revolver”, um passo bem além de “Rubber Soul”, mas a beleza de “Pet Sounds” acendeu um fogo nos garotos de Liverpool, como George Martin, produtor do grupo inglês, disse em relato resgatado pelo Storius:
“Eu toquei tanto o disco pro John que seria difícil pra ele escapar de sua influência.”
O auge da disputa
Enquanto os Beatles se enfurnaram no estúdio para responder a “Pet Sounds”, Brian Wilson fazia o mesmo. Apesar de influenciado por “Revolver”, Wilson não queria copiar o que os ingleses estavam fazendo, mas sim superar a si mesmo em termos de expandir os conceitos estabelecidos em sua obra-prima. Antes mesmo do álbum sair, o compositor americano já trabalhava na canção pela qual ele seria mais conhecido.
Um mini-épico que demorou sete meses para gravar em meio ao perfeccionismo frenético de Brian Wilson, “Good Vibrations” é uma daquelas canções capazes de serem declaradas perfeitas. Diferente de tudo vindo antes dela, mas ainda assim contendo todos os elementos responsáveis por tornar os Beach Boys adorados, a música chegou ao primeiro lugar das paradas americanas em 1966, e Wilson declarou ser o primeiro single de “Smile”, um álbum cuja ambição era retratar todos os estilos musicais dos Estados Unidos numa viagem do leste ao oeste.
Entretanto, os Beatles tinham ambições ainda maiores. Combinando pop, rock, orquestras, música concreta, vaudeville, circo, folk e música indiana, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” era um salto tão grande para a música popular que até hoje é considerado um dos álbuns mais importantes da história do rock, senão o mais.
A criatividade dos ingleses era tamanha que os singles sendo lançados fora do álbum era do mesmo patamar. Reza a lenda que Brian Wilson estava dirigindo com seu amigo Michael Vosse quando “Strawberry Fields Forever” começou a tocar no rádio. Era a primeira experiência de Wilson ouvindo a canção. O compositor encostou o carro para escutá-la e ao final disse para o amigo:
“Eles já fizeram – o que eu queria fazer com ‘Smile’. Talvez seja tarde demais.”
A esse ponto, as sessões de “Smile” estavam se arrastando por mais de um ano. Brigas entre integrantes sobre os rumos musicais do grupo e o estado mental cada vez mais frágil de Brian Wilson contribuíram para que o álbum fosse arquivado. Wilson teve seu papel como líder criativo da banda limitado e ele se tornou um recluso.
Escrevendo para a revista Crawdaddy em 1967, Paul Williams resumiu os problemas:
“O vão entre conceito e realização era grande demais, e nada satisfazia Brian quando finalmente descobria como fazer e colocar em fita. E eventualmente o momento passou… como muitos ótimos artistas antes dele, Brian era incapaz de realizar seu conceito original de ‘Smile’ do jeito que queria, e depois de um tempo ele não queria mais. Ele não tinha mais a mesma visão.”
Quem ganhou?
Os Beatles seguiram evoluindo e revolucionando a música até o fim do grupo, em 1970. Enquanto isso, os Beach Boys sem o comando criativo de Brian Wilson mantiveram o sucesso comercial, mas se tornaram uma banda incapaz – ou até mesmo desinteressada – de acompanhar os tempos.
Em 2004, após anos e anos perdidos para esquizofrenia, Brian Wilson finalmente gravou sua própria versão de “Smile”, para aclamação da crítica. Em 2011, foi lançado um box set contendo todas as sessões originais.
Perguntado em 2017 pelo Daily Beast sobre a rivalidade com os Beatles, Wilson brincou:
“Não era muito uma rivalidade. Eu que tinha inveja! Era mais inspiração mútua, eu acho. Eu conseguia ouvir seus discos antes de saírem e fiquei acachapado por ‘Rubber Soul’. E ‘Sgt Pepper’s’? Fiquei acachapado por esse também. Mas era inspirador também. Aí eu fiz ‘Good Vibrations’ e ‘Smile’ e era empolgante. Eu mergulhei de cabeça e produzi à beça.”
No fim, quem ganhou com essa rivalidade foi todo mundo.
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