Como o U2 começou sua cruzada pacifista com “War”

Grupo irlandês sobreviveu a um conflito com sua própria fé, olhou ao seu redor e descobriu sua consciência política, estourando mundialmente

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Olhando sob o ponto de vista do presente, é impossível pensar em um mundo onde o U2 não é uma das maiores bandas do planeta. O quarteto irlandês transcendeu os limites da música e ajudou a politizar gerações de fãs, usando o palco como uma plataforma para apresentar a milhões as mazelas do mundo e pregar solidariedade como o caminho para a frente.

Em 1983, porém, o grupo estava numa situação curiosa. Era uma banda cuja estreia promissora em “Boy” (1980) teve seu ímpeto roubado por seu segundo disco, o confuso “October” (1981), além de discussões internas que quase motivaram integrantes a deixar a música.

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Felizmente, não foi o caso. O que aconteceu foi um despertar político e a descoberta de uma sonoridade emblemática, tão singular a ponto de ser referida como “o estilo U2”.

Essa é a história de “War”.

Antes de tudo, quase o fim

Houve um ponto na trajetória do U2, durante as gravações de “October”, que tanto o vocalista Bono quanto o guitarrista The Edge saíram da banda. Ambos estavam prontos para desistir da música como carreira.

Juntamente com o baterista Larry Mullen Jr., eles estavam envolvidos com o grupo Shalom Fellowship, parte do Movimento Carismático. Estavam cada vez mais sentindo o peso da contradição entre sonhos de rockstar e o chamado da fé.

No livro “U2 by U2”, de Neil McCormick, Bono conta sobre uma conversa que teve com Edge quando o guitarrista quis sair da banda:

“Ele dizia: ‘O que estamos fazendo é ótimo, mas existe outro mundo lá fora e é disso que quero fazer parte. E a cura real para os males do mundo não vem de uma banda de pós-punk, e sim em se desenvolver espiritualmente e se encontrando seu lugar e o propósito divino na sua vida’. Ele sentia naquele ponto que não podia servir a Deus e ao homem ao mesmo tempo. Eu decidi que não conseguia também, então ambos saímos.”

Isso pegou o resto da banda de surpresa. Contudo, o baixista Adam Clayton explicou em “U2 by U2” como o empresário do grupo, Paul McGuinness, serviu como voz da razão:

“Não é como se alguém tivesse convencido eles a não fazer isso, mas acho que Paul apresentou uma interpretação do que eles estavam falando e disse: ‘É isso mesmo que vocês querem? Vocês realmente acham que serão mais eficazes voltando às suas vidas normais? Ou vocês acham que essa oportunidade de estar numa grande banda de rock vai, a longo prazo, ter mais valor?’ Seja lá o que aconteceu após, mas acho que isso deu a eles motivação para terminar o disco.”

Irlandeses na América

Bono, The Edge e Larry Mullen Jr deixaram o Movimento Carismático, terminaram o disco e saíram em turnê. “October”, lançado em outubro de 1981, vendeu mal de início fora do Reino Unido, mas aos poucos o U2 estava começando a ter mais público em certas cidades nos EUA, mesmo sem nenhum apoio de rádio para o single “Gloria”.

A razão para isso tem três letras: MTV. O clipe de “Gloria”, feito em orçamento microscópico filmando a banda em uma barca no porto de Dublin, se beneficiou de ter saído dois meses após o canal ir ao ar pela primeira vez. Nessa época, a grande maioria dos vídeos exibidos acabavam sendo de artistas ingleses, experientes na prática por causa de programas como “Top of the Pops”.

Enquanto isso, o U2 tentava aos trancos e barrancos sobreviver uma turnê sem o menor apoio da gravadora. Ainda eram confrontados com notícias vindas da Irlanda, como Bono contou em “U2 by U2”:

“Algumas coisas estavam acontecendo durante a turnê ‘October’. Bobby Sands estava morrendo, numa greve de fome na Irlanda, e pessoas estavam gritando seu nome na nossa direção enquanto estávamos no palco. Tinham alguns do contingente ‘f#da-se o IRA (Exército Republicano Irlandês)’, que achavam que, por sermos irlandeses na América, tinha um tipo de fascinação do público.”

Bobby Sands era um oficial do Provisional IRA, exército rebelde católico na Irlanda do Norte, que liderou uma greve de fome protestando a remoção do status de presos políticos de soldados do movimento pelo governo do Reino Unido. Ele chegou a ser eleito membro do Parlamento enquanto preso, mas infelizmente faleceu após 53 dias de jejum.

Bono continua no livro:

“Eu não podia evitar de ficar emocionado pela coragem de Bobby Sands e entendemos como pessoas haviam se armado para se defender, mesmo se não achássemos que era a coisa certa a fazer. Mas era claro que o Movimento Republicano estava se tornando um monstro na tentativa de destruir outro monstro. Esses eram tempos perigosos na Irlanda – o nacionalismo estava ganhando um contorno indesejável… Então quando estávamos nos preparando para o álbum ‘War’, começamos a pensar sobre o que era ser irlandês. Tínhamos que analisar algumas dessas questões. Você realmente acredita em não-violência? A que ponto você se defenderia? Esses não são problemas simples de resolver.”

Uma casinha na praia

Ao fim da turnê de “October”, o U2 montou sua base em uma casa à beira da praia em Howth, uma cidade no litoral irlandês. Bono e sua esposa, Ali, recém-casados, ocuparam o único quarto de dormir, enquanto o resto da banda ficava na sala.

No período de duas semanas da lua-de-mel do casal, Edge ficou com a casa toda para si. Foi nesse período que o guitarrista bolou suas partes de canções como “Seconds”, “Drowning Man” e o single “New Year’s Day”.

No entanto, o resultado mais importante desse retiro foi “Sunday Bloody Sunday”, que ele detalha em “U2 by U2”:

“A primeira versão de ‘Sunday Bloody Sunday’ surgiu durante um dia bem deprimente naquela casinha na praia. Eu estava sozinho, nada acontecia como deveria e eu tive uma briga enorme com minha namorada porque eu estava trabalhando enquanto todo mundo estava de férias. Parecia cada vez mais evidente que eu deveria estar de férias também em vez de perder meu tempo tentando virar um compositor, já que eu obviamente não tinha jeito pra coisa. Eu fiz a única coisa que me veio à cabeça, canalizar todo meu medo e frustração e autodepreciação para música. Eu peguei a guitarra e deixei tudo sair. Era apenas um esboço, um traço, eu não tinha um título ou melodia pro refrão, mas eu tinha uns versos e um tema.”

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O que começou como uma música explicitamente antiterrorismo irlandês ganhou contornos mais universais. Bono teve a ideia de referenciar a tragédia do Domingo Sangrento, quando 26 pessoas foram baleadas e 14 mortas pelo exército britânico na Irlanda do Norte durante uma manifestação na Páscoa. Só que em vez de fazer uma música sobre o acontecimento em si, a mensagem pacifista foi colocada no centro de tudo.

Um dos grandes elementos sonoros de “Sunday Bloody Sunday” é a batida quase militar. Uma das primeiras experiências de Larry Mullen Jr.com percussão foi quando tocou na banda marcial Artane Boys Band. A passagem dele foi extremamente curta – três semanas, porque ele se recusou a cortar o cabelo longo –, mas a influência está evidente na canção.

Ao longo da turnê de “October”, Mullen e o baixista Adam Clayton foram criando um entrosamento maior, desenvolvendo suas habilidades. Em “War”, eles foram capazes de criar uma base rítmica mais forte.

O resultado foi uma banda musicalmente mais focada. Todos os temas de juventude e busca espiritual dos trabalhos anteriores culminaram na apresentação da consciência política do U2 ao mundo.

Em entrevista de 1983 ao NME, Bono falou sobre esse despertar e a escolha do nome “War” para o disco:

“Muitas das músicas no nosso último álbum eram bem abstratas, mas ‘War’ é intencionalmente mais direto, mais específico. Mas você ainda pode interpretar o título de várias maneiras. Não estamos interessados apenas nos aspectos físicos da guerra. Os efeitos emocionais são tão importantes quanto, ‘as trincheiras cavadas nos nossos corações’. Pessoas se tornaram imunes à violência. Assistindo televisão, é difícil diferenciar fato de ficção. Um minuto você vê alguém tomando um tiro em ‘The Professionals’ [série policial inglesa da época] e no próximo vê alguém no noticiário caindo da janela após ser baleado.Um é ficção e o outro é vida real, mas estamos tão acostumados com ficção que ficamos dessensibilizados com a coisa de verdade. Guerra pode ser a história de um lar partido, uma família em guerra. Em vez de colocarmos tanques e armas na capa, colocamos o rosto de uma criança. Guerra também pode ser algo mental, algo emocional entre pessoas que se amam. Não precisa ser algo físico.”

A criança na capa a qual Bono se refere é Peter Rowen, filho de artista irlandês Guggi. Ele já havia servido como modelo para a estreia do U2, “Boy”, de braços abertos e saturado de luz branca. 

Agora, ele aparecia com as mãos atrás da cabeça, uma ferida no lábio e uma expressão de quem havia passado por muito mais do esperado para alguém de sua idade.

Rock se ouve e se vê

O U2 compreendia que rock não se consome apenas com os ouvidos. Em um esforço de dar uma imagem mais forte à banda, recrutaram o holandês Anton Corbijn, famoso por seu trabalho fotográfico no NME e sua parceria com o grupo de pós-punk Joy Division.

Corbjin os havia visto durante a turnê de “October” e se tornou o fotógrafo oficial da banda. Trouxe uma sensibilidade para a identidade visual do U2 que veio a se tornar uma referência no rock. Artistas do calibre de Depeche Mode, Metallica e The Killers se inspiraram nas imagens da banda.

Foto: Anton Corbijn (via U2start.com)

“War” foi lançado em 28 de fevereiro de 1983. “New Year’s Day”, single inaugural, atingiu o Top 10 britânico e se tornou a primeira música do grupo a aparecer na Billboard 100. O álbum atingiu o topo das paradas do Reino Unido e a 12ª posição nos Estados Unidos.

A turnê “War” consistiu de 110 datas nos EUA, Europa e Japão ao longo de nove meses, com plateias cada vez maiores a cada lugar que visitavam. Uma apresentação do grupo no Red Rocks Amphitheater, gravada para o filme concerto “U2 Live At Red Rocks: Under a Blood Red Sky”, foi depois citada pela Rolling Stone como um dos “50 Momentos que Mudaram a História do Rock’n’Roll” numa edição especial da revista em 2004.

Um disco ao vivo sob o nome “Under a Blood Red Sky” foi lançado em novembro de 1983, contendo algumas das melhores performances do U2 ao longo da turnê, a primeira do grupo a dar lucro. O álbum chegou à 28ª posição da Billboard 200.

Por quanto tempo?

Em “Sunday Bloody Sunday”, o verso mais importante é “How long must we sing this song?” (“Por quanto tempo devemos cantar esta música?”) que a plateia terminava toda apresentação da turnê “War” cantando para o U2.

Quarenta anos se passaram e a mensagem desse verso continua forte. Em meio a conflitos incessantes por todo mundo, radicalização política e um senso de tudo estar perto ao fim, podemos nos perguntar até quando temos de continuar cantando essa canção.

Mesmo assim, e talvez por causa dessa necessidade de pregar pacifismo e solidariedade, o U2 continua.

U2 – “War”

  • Lançado em 28 de fevereiro de 1983
  • Produzido por Steve Lillywhite, exceção feita à faixa 6, produzida por Bill Whelan

Faixas:

  1. Sunday Bloody Sunday
  2. Seconds
  3. New Year’s Day
  4. Like a Song…
  5. Drowning Man
  6. The Refugee
  7. Two Hearts Beat as One
  8. Red Light
  9. Surrender
  10. 40

Músicos:

  • Bono (vocal, guitarra)
  • The Edge (guitarra, piano, lap steel, backing vocals, vocal principal na faixa 2, baixo não creditado na faixa 10)
  • Adam Clayton (baixo)
  • Larry Mullen Jr. (bateria, percussão)

Músicos adicionais:

  • Kenny Fradley (trompete na faixa 8)
  • Steve Wickham (violino nas faixas 1 e 5)
  • The Coconuts: Cheryl Poirier, Adriana Kaegi, Taryn Hagey, Jessica Felton (backing vocals nas faixas 4, 8 e 9)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

1 COMENTÁRIO

  1. Em “Sunday Bloody Sunday”, o verso mais importante é “How long must we sing this song?” (“Por quanto tempo devemos cantar esta música?”) que a plateia terminava toda apresentação da turnê “War” cantando para o U2.
    >>>. Observação.
    O verso é da música 40, não de Sunday Bloody Sunday.

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