Na história do rock, existem grupos que lançam movimentos e seus seguidores, pela maior parte. Também existem bandas tão singulares a ponto de não caberem em nenhum tipo de descritivo, mas cujo talento é inegável a ponto de sobreviverem por décadas sendo reconhecidos pelo som único.
Esse é o caso do R.E.M., banda que surgiu aparentemente do nada em Athens, uma cidade universitária na Georgia, e quase imediatamente conseguiu cativar o underground e traduzir sua sensibilidade para o mainstream.
As letras oblíquas que Michael Stipe cantava quase com vergonha, as guitarras de doze cordas cortesia de Peter Buck, o baixo melódico e os backing vocals fora da norma de Mike Mills, a sensibilidade e suavidade em meio ao auge do hardcore… tudo relacionado ao R.E.M. parecia estranho no papel, mas funcionou de cara.
Como que eles conseguiram fazer uma estreia do nível de “Murmur”?
Espírito punk
Michael Stipe e Peter Buck se conheceram na loja de discos em que o guitarrista trabalhava na cidade de Athens, com os dois se tornando amigos graças a um interesse mútuo em artistas proto-punk. Isso era janeiro de 1980.
Segundo uma entrevista de Stipe para a fanzine Alternative America em 1983, Buck descobriu os interesses musicais do vocalista de uma maneira inusitada:
“Peter, o guitarrista, estava trabalhando numa loja de discos na cidade que vendia álbuns contrabandeados e material promocional, e eu ia lá pra comprar discos. Calhou que eu estava comprando tudo que ele estava reservando pra ele mesmo. A gente criou uma amizade em torno disso. Porque era óbvio que a gente curtia o mesmo tipo de música.”
Michael Stipe já havia tocado em alguns grupos punk na sua cidade natal de St. Louis, mas Peter Buck nunca havia participado de nenhuma banda, apesar de tocar guitarra. Os dois fizeram algumas tentativas de montar algo com outros alunos da Universidade da Georgia, mas foi necessário eles conhecerem a dupla Mike Mills (baixo) e Bill Berry (bateria) para dar liga.
Mills e Berry se conheciam desde o colégio, tocando em bandas de country club e festas escolares. Os quatro decidiram formar um grupo sem muitas expectativas, trabalhando em canções e ensaiando numa igreja desativada. Eles fizeram o primeiro show deles em abril de 1980, já apresentando músicas originais, junto com covers dos anos 60 e 70.
Falando à Alternative America, Stipe detalhou esse processo criativo inicial:
“A gente estava fazendo alguns covers; composto algumas canções nós mesmos. Acho que tivemos três semanas de ensaios. Fizemos, acho, 10 ou 12 canções em uma semana. Nem precisa dizer que eram bem horríveis. Não as tocamos mais. Levando em conta que nenhum de nós havia composto uma música antes, era um baita feito. A gente estava com tanto medo. Imagine quatro pessoas que nunca fizeram parte de uma banda de verdade sendo postos juntos. Tínhamos tanto medo do que o outro ia dizer que todo mundo concordava com tudo sugerido. As primeiras canções foram bem fundamentais, bem simples, canções que dá pra compor em cinco minutos. Muitas delas nem tinham letra. Eu só levantava e gritava.”
Esse depoimento ilustra uma característica do processo criativo do R.E.M. que se tornou uma marca registrada da banda. Eles sempre foram uma democracia, com cada integrante oferecendo contribuições musicais e sendo parte vital nas decisões.
Isso acarretou numa atmosfera onde a música do grupo refletia mais a personalidade do quarteto do que uma influência maior. O proto-punk de Patti Smith, Television e Velvet Underground andava de mãos dadas com Byrds, Aerosmith, Big Star, Bowie e Iggy Pop.
Rapidamente, o R.E.M. se viu tocando para plateias cada vez maiores em Athens, chamando a atenção das gravadoras. Por mais que a cidade universitária pareça fora do eixo para nós brasileiros, a cena local já havia gerado um ato de muito sucesso na forma do B-52s.
O sucesso crescente fez os quatro integrantes largarem os estudos para se concentrar na banda. Eles contrataram Jefferson Holt como empresário e saíram em turnê pelo sul dos Estados Unidos, todo mundo enfurnado numa van por um ano e meio.
Single aclamado e interesse de major
Em julho de 1981, o R.E.M. lançou seu primeiro single, “Radio Free Europe”. A faixa foi gravada inicialmente como uma demo no estúdio do produtor Mitch Easter junto com as canções “Sitting Still” e a instrumental “White Tornado”.
A banda decidiu fazer uma prensagem de mil cópias pelo selo independente Hib-Tone, com a maioria dessas sendo distribuídas promocionalmente.
A estratégia causou tanta demanda a ponto de precisarem prensar mais seis mil cópias. Mesmo numa tiragem extremamente limitada, “Radio Free Europe” chegou aos ouvidos certos e foi eleito um dos melhores singles daquele ano pelo New York Times.
O R.E.M. voltou aos estúdios de Easter na Carolina do Norte em outubro de 1981 para gravar o que seria o primeiro EP deles, “Chronic Town”. O plano era lançar o trabalho pelo selo independente Dasht Hopes, sendo então estabelecido por Jefferson Holt e um sócio.
Nesse meio tempo, a demo da banda começou a fazer a ronda entre majors e a banda foi abordada por um selo que viria a se tornar icônico nos anos 80, a I.R.S.
A I.R.S. Records havia sido fundada por Miles Copeland III, irmão do baterista Stewart Copeland. Era empresário do The Police e um marketeiro sem vergonha nato. O R.E.M. assinou com o selo em maio de 1982 e o EP saiu em agosto daquele ano, com ótimas críticas na imprensa americana e inglesa.
Não destruir o conceito
O quarteto entrou no estúdio em dezembro de 1982, dessa vez trabalhando com Stephen Hague na produção. Quase de cara, houve fricção devido ao estilo perfeccionista do produtor, que os fazia repetir takes várias vezes e colocou teclados em “Catapult” sem a autorização da banda.
O R.E.M. apelou à I.R.S. para poderem trabalhar novamente com Mitch Easter e seu parceiro Don Dixon. A gravadora os deixou fazerem uma sessão de teste, e o resultado, “Pilgrimage”, foi tão satisfatório a ponto de serem permitidos continuar o trabalho no resto do disco.
Banda e produtores se puseram a trabalhar no que viria a ser “Murmur” numa locação curiosa: Reflection Studios, em Charlotte, mais famoso por ser o preferido do casal de televangelistas Jim e Tammy Faye Bakker.
Numa entrevista à Rolling Stone (via uDiscoverMusic), Peter Buck explicou a lógica por trás da decisão:
“Queríamos fazer o disco no Sul com pessoas que não tinham experiência em fazer rock’n’roll. Em Charlotte, a gente podia passar a noite inteira brincando, ter ideias e não precisar se preocupar demais.”
Em outra entrevista, para o Music Radar, Easter falou sobre a facilidade de trabalhar com o grupo:
“Eles achavam que havia algo moral em fazer tudo rápido. Digo, eles não eram desleixados, eles eram discernidos, mas eles não eram neuróticos. Eles estavam muito empolgados com relação à banda. Era glorioso. Eu acho que eles ensaiavam direto simplesmente porque gostavam de tocar juntos. Todo mundo na banda era capaz de acertar take de primeira.”
Don Dixon também não mediu elogios ao grupo numa entrevista à Rolling Stone (via uDiscoverMusic):
“Era uma combinação única de pessoas, em que havia tensão e coesão na medida certa. Estávamos lidando com um conceito artístico meio frágil e tentando introduzir um pouco de sensibilidade pop sem destruir tudo.”
Nada de clichês
O R.E.M. chegou no estúdio tendo trabalhado nas músicas ao longo de dois anos de turnê, a ponto de terem decidido a tracklist antes mesmo das gravações. Mesmo assim, eles estavam abertos a experimentação no estúdio, mas com certos limites.
A experiência negativa com Stephen Hague convenceu a banda a adotar uma postura de recusar qualquer clichê de rock no disco. Nada de solos de guitarra ou sintetizadores. Tanto Mike Mills quanto Bill Berry contribuíram com partes de piano influenciadas por country, o baterista sendo responsável por compor a música em “Perfect Circle”. Eles não queriam soar como os anos 1980, mas sim atemporais.
E nesse aspecto Don Dixon e Mitch Easter foram importantes, segundo Peter Buck numa entrevista para a Rolling Stone (via uDiscoverMusic):
“Eles [Dixon e Easter] foram vitais em nos ensinar como usar o estúdio. Nós passamos a maior parte do tempo encontrando ideias e sons como percussões estranhas, de bater nas pernas da mesa… Eu tocava violão e depois quando parava deixava o reverb ligado com o delay, para que fosse fantasmagórico e estranho.”
Quando estava pronto, Buck sabia que haviam feito algo especial, como ele é citado na Clash Music:
“Eu lembro pensar: ‘Deus, mal posso esperar até todo mundo ouvir isso’. Era tão diferente – não soava como a gente ao vivo, e não soava como nada sendo lançado.”
O resultado é exatamente como eles queriam: atemporal. A crítica se apaixonou de cara, com a Rolling Stone elegendo “Murmur” o melhor álbum de 1983. Surpreendentemente, o público também foi cativado pelo som peculiar do R.E.M. e o disco chegou à 36ª posição da parada dos Estados Unidos.
Nos quarenta anos desde então, incontáveis bandas tentaram e falharam replicar a fórmula desse álbum, enquanto o R.E.M. foi evoluindo e se tornando um dos maiores grupos da história do rock. Únicos.
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