O retorno do Radiohead às guitarras no politizado “Hail to the Thief”

Dieta de noticiário, animações para criança e histórias da carochinha criaram o disco mais politizado e assustador do grupo inglês

Na virada do milênio, o Radiohead havia escrito seu nome na história do rock ao produzir uma sequência de discos em que eles atingiam um ideal platônico para depois destruir tudo, substituindo guitarras por sintetizadores e baterias eletrônicas.

A dupla de álbuns “Kid A” (2000) e “Amnesiac” (2001) alterou como o público via o papel da música eletrônica em relação ao rock, e os britânicos se viram tão à frente de seus contemporâneos a ponto de qualquer outra inovação parecer excessiva dali em diante.

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Em meio a tudo isso, a eleição de George W. Bush para a presidência dos Estados Unidos, a derrubada de regulações financeiras separando setores de investimentos de bancos tradicionais e os efeitos de longo prazo dos protestos anti-globalização em Seattle no ano de 1999 apenas serviam para tornar o desconforto da banda com a realidade ainda maior.

A revolução pregada pelo Radiohead agora não seria só musical.

Devolvendo o elemento humano

O Radiohead passou a melhor parte de quatro anos deixando de ser uma banda de rock ao adotar elementos de música eletrônica, jazz e experimental. Isso acabou gerando os discos “Kid A” e “Amnesiac”, nascidos da mesma leva de gravações.

Entretanto, apesar de terem sido bem recebidos pela crítica e a banda laudada por ir onde quase nenhuma banda mainstream havia ido antes, havia um senso entre os integrantes de que o próximo capítulo deles não iria conter inovação para haver inovação.

Em entrevista de 2003 à Rolling Stone, o vocalista Thom Yorke discutiu como a turnê dos dois discos os fez perceber como estavam satisfeitos no lugar no qual estavam, além de perceberem o elemento humano na música eletrônica durante os shows:

“Quando a gente conversou sobre isso, depois da turnê, nós percebemos que não queríamos fazer nenhum salto criativo ou declaração. Esse é um espaço legal que estamos. Deveríamos continuar assim e aproveitar. Além disso, eu estava interessado na ideia de que até em eletrônica, existe um elemento de espontaneidade na performance. Máquinas entravam e saíam da música. Era a tensão entre o que é humano e o que vem das máquinas. Essas eram coisas que estávamos interessados enquanto aprendemos a tocar as canções de ‘Kid A’ e ‘Amnesiac’ ao vivo.”

Histórias da carochinha

A primeira grande inspiração para “Hail to the Thief” veio durante um hiato de seis meses após a turnê de “Amnesiac”. Thom Yorke começou a ter experiências oníricas enquanto dirigia de noite por estradas do interior da Inglaterra, vendo animais silvestres correndo desesperados por abrigo ao serem banhados pelas luzes dos faróis e as sombras cada vez mais pronunciadas do pôr-do-sol. Nesse estado, ele começou a pensar sobre o termo “the gloaming”, uma versão barroca de “crepúsculo”.

Em entrevista de 2003 ao NME, ele tentou descrever:

“Eu soo doido. Mas tem muitas sombras e forças malignas manipulando as cordas no momento. É algo quase sequer humano, é algo vindo de outro lugar, e impossível de controlar. Agora, eu não sei se você tem essa experiência no seu trabalho, mas no meu, você conhece pessoas que deixaram de ser humanas. Sabe como num escritório sempre tem uma pessoa que é um babaca ambicioso que não liga quem ele atropela, chegando a pensar estarem com razão? Ou quando você conhece um político poderoso, é como cumprimentar ar rarefeito. O tornado tem nada no meio. ‘The gloaming’ pra mim é explorar essa escuridão nociva, que parece ser impossível de contra-atacar.”

Yorke deu início aos trabalhos enviando CDs de demos aos outros integrantes, intitulados “The Gloaming”, “Episcoval” e “Hold Your Prize”. Esses registros continham rascunhos de guitarra e piano assim como música eletrônica, dando os primeiros sinais concretos que o Radiohead voltaria ao rock e o vocalista estava pronto para colaborar mais com o resto do grupo, como Ed O’Brien contou à Q em 2003:

“Ele não batizava CDs há cinco anos. Me lembrou das fitas de ‘OK Computer’. Era algo nostálgico. Esse era o jeito que costumava ser. Significou pra mim que ele estava pronto para se comunicar novamente.”

A banda estava em um estágio em que começaram a formar famílias, e domesticidade acabava informando o material de maneiras inesperadas. Thom Yorke agora era pai e passava os dias consumindo uma dieta de noticiários e programas infantis ingleses clássicos feitos de animação stop-motion, como “Bagpuss”.

Foi assistindo aos doze episódios dessa série que uma figura se prendeu à sua imaginação, “The Boney King of Nowhere”. Yorke inicialmente queria batizar o disco com esse nome, mas após os outros integrantes acharem progressivo demais, foi relegado ao posto de subtítulo. Todas as canções do álbum tinham um.

Nada menos progressivo que subtítulos.

Outras influências de literatura infantil aparecem ao longo do álbum; trechos de “Chicken Licken”, um dos contos preferidos de Yorke quando criança, aparecem na letra de “2 + 2 = 5”. A história conta de um passarinho atingido na cabeça por uma noz. Ele presume a partir disso que o céu está caindo, e corre para avisar o rei. Nisso, ele atrai um cortejo de outros pássaros, também preocupados. Uma raposa oferece mostrar ao grupo o caminho do castelo, apenas para levá-los à toca de sua família, onde estraçalham as aves.

Em entrevista de 2003 à Q, Yorke comentou, após rir do tom macabro da história, sobre a frustração maior criada pela história:

“E a pior parte é, eles não puderam contar ao rei que o céu estava caindo. Isso poderia estar acontecendo todo dia de nossas vidas, aqueles com as notícias importantes lhes acertando na cabeça.”

Thom Yorke começou assim a traçar paralelos entre histórias da carochinha e o mundo real, cada vez mais caótico. Os Estados Unidos estavam um ano removidos dos atentados de 11 de setembro. Nesse período, o governo de George W. Bush conseguiram usar a paranoia geral para passar o Ato Patriota, responsável por enfraquecer liberdades civis de habitantes americanos, especialmente aqueles de família oriunda de países do Oriente Médio.

O título, “Hail to the Thief”, é uma alusão direta a Bush, cuja vitória nas eleições de 2000 é até hoje objeto de muita discussão sobre supressão de votos e fraude. Numa entrevista à Rolling Stone, Yorke revelou como ouviu a frase pela primeira vez:

“Foi um momento formativo – uma noite no rádio, antes mesmo de estarmos fazendo o disco. A BBC estava exibindo reportagens de como o voto na Flórida havia sido armado e como Bush estava sendo chamado de ladrão. Essa frase ligou a lâmpada na minha cabeça. Eu não conseguia escapar dela. E a luz – eu estava dirigindo naquela noite com o rádio ligado – estava particularmente estranha. Eu tive essa sensação de pressentimento bem indescritível. Para mim, todos os sentimentos naquele disco vem daquele momento.”

Na mesma entrevista, em meio a conversas sobre o papel da ONU e como os EUA simplesmente ignoraram a maior entidade diplomática do mundo para invadir o Iraque, Yorke resumiu o clima do álbum:

“O álbum inteiro é sobre raiva pouco velada – bem pouco velada. Mas não havia muita análise acontecendo enquanto criávamos as músicas. Algumas delas são bem antigas também. ‘I Will’ tem três ou quatro anos. ‘Myxomatosis’ tem três ou quatro anos. mas haviam canções que estavam lá. Você trabalha com o que tem.”

Mudança de ares

Após uma turnê rápida por Portugal e Espanha em julho e agosto de 2002, o Radiohead voou até Los Angeles para gravar o que viria a ser “Hail to the Thief” no Ocean Way Recording Studios. 

A locação foi sugestão do produtor de longa data do grupo, Nigel Godrich, que havia trabalhado com Beck e Travis anteriormente lá. Para ele, uma mudança de ares seria saudável para a banda, algo reconhecido depois por Thom Yorke à Rolling Stone:

“Nós estávamos tipo: ‘queremos ir pro outro lado do mundo pra fazer isso’. Mas foi ótimo, porque trabalhamos bem duro. Fizemos uma faixa por dia. Foi tipo colônia de férias.”

Os integrantes do Radiohead saíam juntos para comer, visitavam pontos turísticos e fumavam maconha suficiente para sossegar o facho, algo até então não feito. Mas ainda não era suficiente para que um dos momentos mais incríveis da discografia da banda se cristalizasse.

“There There”, o primeiro single do disco, era uma canção sendo trabalhada pela banda desde as sessões de “Kid A”, sem sucesso. Ela havia até aparecido num webcast em 2000, ainda embrionária. A versão gravada em Los Angeles ainda não estava no ponto certo, como Jonny Greenwood disse em um CD de entrevistas lançado com o álbum:

“Às vezes não funciona de jeito nenhum, porque você não tem o volume real de um show ao vivo… Isso não funciona vindo dos alto-falantes na sua sala… soava meio como se estávamos fazer uma gravação estilo ‘banda tocando junta ao vivo.”

O grupo tentou mais uma vez gravar a canção, dessa vez em Oxford. O arranjo final aliava algumas das maiores influências musicais do grupo. A faixa é construída a partir de uma percussão forte baseada em toms, inspirada nos sons do Can, conjunto experimental alemão.

A isso, eles adicionaram uma pitada de dinâmicas estilo Pixies, como o guitarrista Jonny Greenwood contou ao NME em 2003:

“Tem aquela qualidade dos Pixies que eu adoro, de ir acumulando tensão, e então soltando tudo. O que é bem importante em música – não pensar sobre coisas sendo boas instantaneamente, mas boas pensando em cinco minutos mais à frente.”

O clímax da faixa é onde outra influência do grupo aparece, como o baixista Colin Greenwood contou ao livro “Radiohead Biography”:

“Todos nós ficamos empolgados no final porque Nigel estava tentando fazer Jonny tocar como John McGeoch do Siouxsie and the Banshees. Todos os velhotes da banda estavam no céu.

Ao final das mixagens, Thom Yorke chegou a chorar por não só estar feliz da música estar finalizada, como também acreditar ter sido a melhor coisa feita por eles até então. O vocalista até entrou em contato com Oliver Postgate, criador de “Bagpuss”, para fazer o clipe da canção. Infelizmente, o senhor de 78 anos já estava aposentado e precisou recusar.

Yorke então encarregou Chris Hopewell da tarefa, lhe passando as orientações de fazer algo inspirado nos contos dos Irmãos Grimm e no trabalho do animador surrealista tcheco Jan Švankmajer, cuja obra influenciou nomes como Terry Gilliam.

Vazamento

No dia 30 de março de 2003, dez semanas antes do lançamento de “Hail to the Thief”, o disco vazou. Melhor dizendo, versões inacabadas do álbum vazaram. Algo que, compreensivelmente não agradou ao grupo, como Colin Greenwood falou à Q em 2003:

“Ter nossa música roubada foi irritante porque não estava finalizada. É como ser fotografado vestindo só um pé de meia saindo da cama de manhã. Não sabemos quem foi. Pode ser qualquer um porque é digital.”

Felizmente, o Radiohead não culpou os fãs por compartilharem as canções, se preocupando mais em repreender quem vazou. O baixista ainda comentou na mesma entrevista o absurdo da EMI, gravadora da banda, tentar impedir rádios de tocarem as versões vazadas:

“As gravadoras não pagam milhares de dólares para estações de rádio tocarem seus discos? Agora estão pagando dinheiro para estações não tocarem os nossos.”

“Hail to the Thief” finalmente saiu em 9 de julho de 2003 no Reino Unido, e no dia seguinte nos Estados Unidos. O disco estreou no topo das paradas britânicas, vendendo 114.320 cópias na primeira semana. Do outro lado do Atlântico, eles chegaram à 3ª posição da Billboard 200, com 300 mil álbuns vendidos na estreia – a maior marca da carreira deles até então.

Desde então, o álbum vendeu mais de um milhão de cópias pelo mundo. Recebeu ainda certificação de platina no Reino Unido e no Canadá.

Mas isso parece não ser o suficiente para o grupo, que se mostrou insatisfeito com diversos aspectos do lançamento: desde a reação da EMI ao vazamento até aspectos criativos como a tracklist.

O Radiohead dali em diante permaneceria quatro anos sem lançar discos, o maior período de silêncio criativo deles até então. Felizmente, quando chegou a hora deles lançarem o sucessor a “Hail to the Thief”, eles revolucionaram o rock por uma terceira vez, com “In Rainbows” (2007).

Radiohead — “Hail to the Thief”

  • Lançado em 9 de junho de 2003 pela Parlophone / Capitol
  • Produzido por Nigel Godrich e Radiohead

Faixas:

  1. 2 + 2 = 5 (The Lukewarm.)
  2. Sit Down Stand Up (Snakes & Ladders.)
  3. Sail to the Moon (Brush the Cobwebs Out of the Sky.)
  4. Backdrifts (Honeymoon Is Over.)
  5. Go to Sleep (Little Man Being Erased.)
  6. Where I End and You Begin (The Sky Is Falling In.)
  7. We Suck Young Blood (Your Time Is Up.)
  8. The Gloaming (Softly Open Our Mouths in the Cold.)
  9. There There (The Boney King of Nowhere.)
  10. I Will (No Man’s Land.)
  11. A Punchup at a Wedding (No No No No No No No No.)
  12. Myxomatosis (Judge, Jury & Executioner.)
  13. Scatterbrain (As Dead as Leaves.)
  14. A Wolf at the Door (It Girl. Rag Doll.)

Músicos:

  • Thom Yorke (vocais, guitarra, piano, laptop)
  • Jonny Greenwood (guitarra, sistemas analógicos, ondas Martenot, laptop, piano de brinquedo, glockenspiel)
  • Colin Greenwood (baixo, sintetizador de cordas, sampler)
  • Ed O’Brien (guitarra, efeitos, voz)
  • Philip Selway (bateria, percussão)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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