“Krig-ha Bandolo”, quando o Brasil conheceu Raul Seixas

Foram trancos e barrancos, saídas falsas e fiascos até um dos nomes mais importantes do rock nacional ter sua oportunidade de brilhar

É impossível imaginar a música brasileira sem Raul Seixas. O cantor é praticamente a face irreverente do rock no país, tendo aliado sua identidade nordestina a clichês americanos para criar algo inegavelmente brasileiro.

Ainda assim, houve uma época em que o Maluco Beleza não conseguia ter sua oportunidade ao sol. Após um fracasso de embarcar no trem da Jovem Guarda, Raul se tornou produtor, emplacando sucessos nas vozes de outras pessoas.

- Advertisement -

Foi apenas quando ele emplacou duas músicas na final do Festival Internacional da Canção, em 1972, que as gravadoras viram seu potencial como cantor. Nessa mesma época, Raul acabou conhecendo seu maior colaborador, o escritor Paulo Coelho.

Todos esses elementos culminaram na estreia “Krig-ha Bandolo”, um dos discos de rock mais importantes da história da música brasileira.

Início e Panteras

Raul Seixas era péssimo aluno. Repetiu múltiplos anos no colégio devido ao seu interesse maior em ler livros nada relacionados aos estudos, ver filmes de faroeste e ouvir rock’n’roll.

Isso o levou a participar de bandas em sua cidade natal, Salvador. A principal, Raulzito e os Panteras, era formada por ele, Mariano Lanat (voz e baixo), Eládio Gilbraz (voz e guitarra) e Carleba (bateria).

A partir de 1963, o grupo se tornou um dos maiores nomes da cena local de rock. Convidados pelo cantor Jerry Adriani, foram para o Rio em 1967 e assinaram um contrato com a EMI-Odeon para gravar um disco.

O álbum, homônimo, saiu em 1968 e não teve sucesso de crítica ou público. Em “O Baú do Raul Revirado”, organizado por Silvio Essinger, Eládio Gilbraz deu suas razões para esse fracasso:

“De um lado, havia a inexperiência de quatro rapazes, recém-chegados da Bahia, falando em qualidade musical, agnosticismo, mudança de conceitos e sonhos. Do outro lado, uma multinacional que só falava em ‘comercial’. Talvez não tenha sido o disco que o grupo imaginara, mas o nosso sonho era gravar um disco.”

A banda sobreviveu servindo como músicos de apoio para Adriani em alguns shows. Ainda assim, Raul chegou a passar fome durante seu tempo no Rio. Ele voltou para Salvador, com o rabo entre as pernas.

Não demorou muito, contudo, para que Adriani convencesse um diretor da CBS, Evandro Ribeiro, a contratar Raul como produtor na gravadora – especialmente para ter alguém capaz de entender seus desejos com quem pudesse trabalhar.

Sucesso para os outros

Como produtor na CBS, Raul Seixas se tornou um nome em demanda por criar cumplicidade com artistas da gravadora, como Leno e Lilian, Tony & Frankye, Osvaldo Nunes, Edy Star, Diana, além do próprio Jerry Adriani.

Enquanto isso, suas composições ganhavam o apreço de vários artistas da Jovem Guarda, com Ed Wilson, Renato e seus Blue Caps e Odair José usando suas letras. Em 1970, três de suas músicas autorais se tornam hits: “Doce doce amor”, na voz de Jerry Adriani, “Ainda Queima a Esperança”, interpretada por Diana e “Se ainda existe amor”, gravada por  Balthazar.

Raul estava em alta, mas queria ainda mais. Tendo conhecido o cantor e compositor Sérgio Sampaio, o desejo de se estabelecer como músico retornou. Ele se juntou a Leno no projeto do primeiro disco solo do cantor, “Vida e Obra de Johnny McCartney”, um trabalho experimental, com letras de cunho político discutindo reforma agrária, repressão e tortura.

Mesmo sendo um projeto ambicioso – o primeiro lançamento brasileiro gravado em oito canais –, o álbum foi censurado pela ditadura e só lançado 25 anos depois.

Outra tentativa de Raul para emplacar um sucesso próprio, “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, também amargou problemas com a censura e péssimas vendas quando saiu em 1971.

O disco, feito em parceria com Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada, combinava a psicodelia dos Beatles e Frank Zappa com a abordagem pop art de nomes como The Who e  elementos tradicionais da música brasileira, como samba, baião e choro. 

Outro aspecto importante, seja para a estética do trabalho ou para justificar seu fracasso, era o desejo por parte de Seixas e Sampaio que o disco fosse uma obra profundamente anárquica e iconoclasta. Propositalmente, desafiava qualquer noção de bom gosto da sociedade brasileira.

“Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” era tão experimental a ponto de Raul usar seus privilégios de produtor na CBS para gravar tudo na calada da noite, sem que a gravadora soubesse o conteúdo. 

Além disso, segundo o livro “Eu quero é botar meu bloco na rua: a biografia de Sérgio Sampaio”, de Rodrigo Moreira, Raul teria aproveitado uma viagem de Evandro Ribeiro aos Estados Unidos para autorizar o lançamento do álbum sem o conhecimento do chefe.

Ao descobrir o acontecido, Ribeiro teria dito para Seixas, Edy Star, Sampaio e Miriam Batucada que a CBS era uma gravadora de música popular. Caso quisessem fazer esse tipo de coisa, melhor irem para a Philips.

Raul permaneceu na CBS como produtor por mais um ano, mas não saiu para a Philips. Não ainda.

Sucesso para si

Em 1972, Raul foi convencido por Sérgio Sampaio a participar do VII Festival Internacional da Canção, no que viria a ser a última edição do concurso exibido, na época, direto do Maracanãzinho para todo o país pela TV Globo. Seixas ainda trabalhava para a CBS nessa época e temia por seu emprego após o fiasco de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”.

Duas músicas foram criadas para o festival: “Let me sing, let me sing”, que ele mesmo apresenta, e “Eu Sou Eu e Nicuri é o Diabo”, tocada por Lena Rios & Os Lobos. Ambas chegaram às finais do concurso e a performance do cantor o apresentou para o público brasileiro em grande escala, que o aprovou como astro.

Aí sim ele foi contratado para a Philips, só que ainda assim não como artista, e sim chefe do Departamento de Serviço Criativo. O cargo foi inventado por Roberto Menescal, em grande parte, por não saber onde os talentos de Raul seriam melhor empregados.

Interessada em determinar a viabilidade de Raul como cantor, a Philips passou uma série de testes a ele. A gravadora o escalou para o Phono 73, um festival de música que ocorreu no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, entre 10 e 13 de maio de 1973. 

Além disso, o colocou para gravar um disco de covers de rock’n’roll, tentando ao menos capitalizar em cima de seu sucesso no VII Festival Internacional da Canção.

Seixas se tornou uma sensação por sua apresentação durante o Phono 73. Chegou a ser eleito em votação popular do Jornal da Tarde um dos cantores mais importantes do país.

A Philips finalmente lhe deixou gravar sua estreia ao ver o sucesso do cantor no festival, onde tocou três canções: “Let me sing, let me sing” – já conhecida do público – e duas músicas novas, “Loteria da Babilônia” e “As Minas do Rei Salomão”, parcerias com o então letrista desconhecido Paulo Coelho.

Leia também:  A melhor música do Metallica na opinião de Rob Halford

Parceria com Paulo Coelho

Raul Seixas e Paulo Coelho haviam se conhecido porque o primeiro se interessou por um artigo sobre extraterrestres escrito pelo segundo, sob pseudônimo, e publicado pela revista A Pomba. Paulo inicialmente estranhou a abordagem de Raul, uma vez que, é importante ressaltar, o cantor ainda era um executivo aparentemente careta da CBS.

Entretanto, os dois firmaram uma amizade, ainda que Coelho fosse resistente à ideia de se tornar letrista. Um jeito encontrado por Seixas de mudar esse pé atrás foi creditar Paulo como co-autor da canção “Caroço de Manga”. O dinheiro proveniente disso alterou o pensamento do hippie.

Num artigo de 2009 à Rolling Stone Brasil, Paulo Coelho falou sobre a relação com Raul:

“A nossa relação sempre foi muito complicada desde o começo. Quando começamos a trabalhar juntos, nos víamos todo dia. Ou ele vinha para minha casa ou eu ia para a casa dele. Era uma relação muito intensa, e uma competição acirrada. Raul sempre achava que eu queria mostrar que era melhor que ele, e vice-versa. Eu era o intelectual que sonhava morrer incompreendido, e Raul tinha esse poder de comunicação muito grande – muito grande. Pouco a pouco, nós começamos a desenvolver toda a ideologia da Sociedade Alternativa, unindo o ideário hippie.”

Coelho, estudioso na época da Lei de Thelema, doutrina filosófica ocultista estabelecida por Aleister Crowley, compartilhou tudo que sabia sobre o assunto com Raul, que prosseguiu a estabelecer seus conceitos de Sociedade Alternativa em cima do assunto. O símbolo desenhado na mão de Seixas na capa de “Krig-ha, Bandolo” trata-se de um símbolo oculto roubado pelo cantor para seus propósitos contraculturais.

À Rolling Stone Brasil, em 2009, Paulo Coelho abordou seus aprendizados com Raul Seixas, falando no caso específico da canção “Al Capone”:

“A coisa que eu mais agradeço dessa relação foi ele ter me ensinado que cultura popular não é, necessariamente, uma coisa negativa. Ao contrário, a capacidade de se comunicar com todos é muito positiva. No fundo, é o objetivo do ser humano, a comunicação com seu próximo. A segunda coisa que ele me ensinou é a linguagem e de como fazer uso dela… Sem dúvida, minha vida tem dois momentos-chave: um é o Caminho de Santiago, quando assumo, realmente, ser escritor. O outro é o encontro com o Raul, quando deixei de querer ser gênio incompreendido. Recordo que eu dava poesias para Raul ler. A primeira versão de ‘Al Capone’, por exemplo, era um grande tratado. O Raul disse: ‘Não é nada disso, cara.’ Eu, irritado, respondi: ‘Você quer algo como ‘Al Capone, vê se te emenda’?’ Ele disse que sim. Eu respondi: ‘Raul, não se escreve dessa maneira’, mas a frase ficou em minha cabeça.’Vê se te emenda’, que coisa horrorosa.’ E, só para sacanear, continuei: ‘Já sabem de teu furo, nego, no imposto de renda’. E perguntei: ‘Você acha que isso é bonito?’ Ele: ‘É ótimo’. Falei: ‘Então tá’. Fui para casa e escrevi a letra de ‘Al Capone’. Ele nunca dizia que a letra estava uma droga. Dizia: ‘Não é assim, sabe?’ Letra de música não é poesia. Letra de música é letra de música. É preciso libertar-se um pouco dessa ideia.”

Ao todo, Paulo Coelho foi creditado pela coautoria de cinco das 12 músicas do que se tornou “Krig-ha, Bandolo!”. O resto foi composto inteiramente por Seixas, que também assinou a produção, junto com Marco Mazzola.

O nome do disco é uma referência ao grito de guerra de Tarzan nos quadrinhos – editados no Brasil pela EBAL –, que significa basicamente “Cuidado, tem bandido aí”. A mensagem antiautoridade do álbum é reforçada em seu carro chefe, o single “Ouro de Tolo”, cuja inspiração foi descrita por Raul numa entrevista à revista Amiga em 1973:

“Precisamente a 7 de janeiro deste ano [1973], às 16 horas, quando houve um eclipse parcial, estava eu na Barra da Tijuca, perto do Recreio dos Bandeirantes, e avistei um disco cujos lados havia [sic] uma auréola cor de fogo em propulsão. Quando surgiu e consegui visualizá-lo, uma coisa estranha me tocou e só então percebi que era um predestinado e as coisas começaram a clarear para mim, sedimentando-me este conceito. Simbolicamente, pareceu-me viajar no tal disco-voador e consegui ver a Terra com toda sua problemática. Ao retornar da viagem espacial, não sei explicar o personagem que encarnei por alguns minutos, mas pareceu-me um jacobino, dentro daquela Revolução Francesa. Refeito, voltei à casa e passei a interessar-me pelo cósmico. Dois meses depois, acordei bem cedo, com vontade de escrever. Era uma espécie de ânsia. Telefonei a um amigo e ele me aconselhou a voltar ao local do disco-voador. Voltei e, lá chegando, tive um sentido amplo do que era a terra, o fogo, a água, e o ar, esses quatro elementos que compõem um todo a ser vivido por mim, mas por etapas.”

“Krig-ha, Bandolo” foi lançado dia 21 de julho de 1973, se tornando um grande sucesso graças a “Ouro de Tolo” e uma canção que veio a se tornar um dos maiores hits da carreira de Raul, “Metamorfose Ambulante”.

Em 2007, a Rolling Stone Brasil elegeu “Krig-ha, Bandolo” o 12º melhor álbum da história da música brasileira. É o disco mais bem colocado de Raul na lista. 

Cinco anos depois, no ano de 2012, uma votação popular conduzida pela rádio Eldorado, o portal Estadao.com.br e o Caderno C2+Música elegeu o álbum o quinto melhor da história da música nacional.

E foi só o começo para Raul.

Raul Seixas – “Krig-ha Bandolo”

  • Lançado em 21 de julho de 1973 pela Philips Records
  • Produzido por Marco Mazzola e Raul Seixas

Faixas:

  1. Introdução: Good Rockin’ Tonight
  2. Mosca na Sopa
  3. Metamorfose Ambulante
  4. Dentadura Postiça
  5. As Minas do Rei Salomão
  6. A Hora do Trem Passar
  7. Al Capone
  8. How Could I Know
  9. Rockixe
  10. Cachorro Urubu
  11. Ouro de Tolo
  12. Meu Nome É Raul Santos Seixas (Vinheta)

Músicos:

  • Raul Seixas (voz, guitarra)
  • Jay Anthony Vaquer (guitarra)
  • Paulo César Barros (baixo)
  • Alex Malheiros (baixo)
  • Pedrinho Batera (bateria)
  • Bill French (bateria)
  • Mamão (bateria)
  • Luiz Paulo Simas (teclados)
  • Miguel Cidras (teclados)
  • Miguel Cidras (piano)
  • José Roberto Bertrami (piano)
  • José Menezes (banjo)
  • Paulinho Braga (berimbau)
  • Marco Mazzola (pandeiro)

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Twitter | Threads | Facebook | YouTube.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidades“Krig-ha Bandolo”, quando o Brasil conheceu Raul Seixas
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades