“Secos & Molhados”, um desafio às normas de gênero no auge dos anos de chumbo

Em plena ditadura, Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad provocaram a música brasileira, gênero e sexualidade de uma vez

São poucos os nomes da música nacional que podem ser realmente chamados de transgressores. Aqueles que nunca suavizaram suas personas em nome de sucesso radiofônico ou um abraço do estabelecimento. 

Ney Matogrosso sempre foi ele mesmo, um pavão magnífico, desafiando todos os conceitos de ser uma estrela pop no Brasil e no mundo, seja por sua lendária presença de palco, sua voz única ou pela fluidez de sua identidade. Sexualidade, gênero, o cantor dançava dentro desse espectro, encantando a todos.

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Ele, contudo, precisava de um início. E de um compositor, pois sempre foi um intérprete acima de tudo. Entram em cena João Ricardo e Gérson Conrad, que não só lhe deram o melhor material de sua carreira, mas com Ney formaram um dos grupos mais lendários da música popular brasileira.

Falemos de Secos & Molhados e seu álbum de estreia homônimo.

Uma placa em Ubatuba

O estopim para o surgimento do Secos & Molhados foi um exílio, ironicamente. João Ricardo nasceu em Portugal, filho do jornalista e poeta João Apolinário. Após o ativismo antifascista do pai na terra natal o tornar inimigo do regime salazarista, a família mudou-se do Porto para São Paulo, em dezembro de 1963.

João Apolinário foi trabalhar na redação jornal Última Hora em janeiro de 1964, mas infelizmente sofreu com o timing infeliz do golpe militar três meses depois. Enquanto isso, seu filho rapidamente fez amigos no Brasil, eventualmente incluindo um rapaz que morava do outro lado da rua em Bela Vista e atendia pelo nome de Gérson Conrad.

Conversando com o site Consultoria do Rock, Conrad relembrou as circunstâncias do encontro inicial entre os dois:

“O meu prédio, naquela época, foi um dos primeiros a reunir salão de festas, quadras poliesportivas, piscina, e como era meio novidade, a molecada do bairro que tinha amigos que moravam no prédio, acabava frequentando o edifício em que eu morava. E foi ali que conheci o João Ricardo, jogando ping-pong, lá no edifício (risos).”

Ele continuou, falando sobre as afinidades surgidas rapidamente:

“A gente começou a bater papo, e ele falou que era apaixonado por música, começamos a falar de Beatles, e a coisa foi amadurecendo.”

A influência dos Beatles era algo importante para Ricardo, que havia presenciado o início da febre quando ainda morava na Europa. Contudo, a mudança para o Brasil lhe deu um choque grande, como contou a Marcelo Pinheiro na revista Brasileiros em março de 2012:

“Eu tinha acabado de conhecer os Beatles na Europa e fiquei horrorizado ao saber que ninguém os conhecia no Brasil. Por influência deles, comecei a tocar violão sozinho e quebrei o violão inteiro, mas aprendi a tocar.”

Ricardo e Conrad passaram por algumas bandas tradicionais de cover em São Paulo, como era o costume de adolescentes, antes que o português resolvesse dar o salto para material autoral. Foi criada, assim, a primeira iteração dos Secos & Molhados, tendo também Fred nos bongôs e Pitoco (Antônio Carlos) na viola caipira.

O nome Secos & Molhados veio de uma placa de anúncio vista por Ricardo na frente de um armazém em Ubatuba, estado de São Paulo. No livro “Secos & Molhados”, de 1974, escrito por Antonio Carlos Morari, o português disse o que lhe atraiu à expressão:

“Um nome que não determina coisa alguma, que se abre para todos os gêneros.”

A formação inicial do grupo se apresentava no Kurtisso Negro, um espaço no bairro do Bixiga, onde atraíra um público de pessoas curiosas com relação à sonoridade diferente de tudo sendo feito na música brasileira.

Uma dessas pessoas era a cantora e compositora Luhli, nascida Heloísa Orosco Borges da Fonseca. Ela formou uma parceria criativa com Ricardo rapidamente, rendendo posteriormente nas canções “O Vira” e “Fala”. 

Quando Fred e Pitoco deixaram o grupo para seguir carreiras solo, Ricardo se vê na necessidade de reformar o grupo. Ele recruta Conrad, mas não conseguia encontrar um vocalista com o alcance necessário para suas composições.

Luhli sabia a pessoa perfeita para a banda.

Casa da Badalação e Tédio

Ney Matogrosso era um nômade, incapaz de se sentir confortável na sociedade brasileira devido à sua homossexualidade. Filho de um militar que batia nele todo dia por absolutamente qualquer coisa, ele se assumiu aos 18 anos e saiu de casa para tentar uma carreira na Aeronáutica.

A vida militar não lhe apelou. Após tentativas de se profissionalizar como ator, ele passou a morar no Rio de Janeiro e trabalhar com artesanato de couro a partir de 1966. Cinco anos depois, ele vendia suas peças de vez em quando na Praça da República em São Paulo, onde conheceu Luhli, que então o apresentou a João Ricardo, como Ney contou à revista Continente em 2020:

“Ela (Luhli) falou para o João Ricardo, quando ele disse que queria fazer um trio, mas não queria botar uma mulher e não achava um homem de voz aguda. Ela disse assim: ‘eu tenho um homem de voz aguda dentro da minha casa’. Eu vivia na casa dela. Não morava lá. Mas eu fazia meu artesanato lá, eu era hippie.”

Em outubro de 1971, Ney fez seu teste e cativou João Ricardo e Gérson Conrad. Eles haviam encontrado o vocalista perfeito para o grupo, os empecilhos sendo apenas o fato dele ser uma década mais velho que ambos e morar em outra cidade. Foram 11 meses até o cantor ir para São Paulo, a ponto dos dois músicos chegarem perto de desistir do projeto.

Mesmo assim, estava cristalizado o Secos & Molhados. Essa nova formação começou a se apresentar na casa noturna Casa da Badalação e Tédio, anexa ao Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Eles eram acompanhados no palco pelo baterista Marcelo Frias, o baixista Willi Verdaguer e o guitarrista John Flavin.

O grupo rapidamente chamou atenção do público não só pelo som, mas também pela apresentação visual do grupo, que adotou uma estética glam influenciada por David Bowie e Alice Cooper. E, acima de tudo, a presença de palco de Ney Matogrosso.

Em entrevista ao podcast Papo com Clê, o cantor contou sobre suas primeiras impressões do grupo e como seu estilo saiu de uma vontade geral de liberação:

“Eu achava que daria certo porque era um repertório muito bom. Quando nós fomos fazer o primeiro show, nós fomos ensaiar antes no teatro onde eu tinha feito uma peça, o Teatro Ruth Escobar… No primeiro dia, nós ensaiamos e eu perguntei assim: ‘o que que vai sobrar pra mim de espaço?’ Aí disseram: ‘tem um metro quadrado aí que é seu’. Eu disse: ‘eu vou fazer o que eu quiser’. Mas eu não sabia o que eu queria fazer. Só queria me liberar.”

Em entrevista a Marcelo Pinheiro para a revista Brasileiros, em março de 2012, João Ricardo falou sobre esse aspecto visual do Secos & Molhados:

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

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Eles logo chamaram a atenção do jornalista Moracy do Val, que começou a lhes agenciar, tentando conseguir para o grupo um contrato de gravadora enviando a todos os selos possíveis fitas cassete com gravações caseiras do grupo.

Depois de um monte de negativas, ele finalmente conseguiu um “sim” – e do melhor lugar possível. A Continental estava se firmando como uma das maiores gravadoras do país e viria a se tornar um oásis da música alternativa.

A banda assinou o contrato em maio de 1973, e colocados para gravar nos estúdio Prova sob a produção de do Val e direção musical de João Ricardo. Foi nessa mesma época que o Secos & Molhados também teve suas primeiras aparições na TV, nos programas Mixturasom, Papo Pop e Band 13.

A música do Secos & Molhados

Se fosse apenas pelo visual marcante, o Secos & Molhados não teria chegado ao status de lendas da MPB. A música feita pela banda era revolucionária, capaz de incorporar influências de Beatles, rock progressivo, o nascente folk rock californiano e misturar tudo isso às raízes portuguesas de João Ricardo e ao aprendizado de Conrad em flamenco e outros gêneros latinos.

Ricardo e Conrad eram afeitos a compor em torno de poesias, sejam de colaboradores do grupo como Luhli e Paulinho Mendonça; o próprio pai do primeiro, João Apolinário; e nomes mais estabelecidos como Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Solano Trindade e Cassiano Ricardo.

O resultado acabou sendo um disco cujo lirismo evocava épocas diferentes do nosso país, mas sempre mostrando semelhanças na luta do povo, seja contra racismo, opressão do governo, no trabalho, da sociedade civil em geral.

A presença de Ney Matogrosso como frontman amplificava ainda mais a mensagem das letras. O cantor era uma figura tão diferente do que a sociedade brasileira estava acostumada a ver que podia muito bem ser um alienígena. Assim como David Bowie e seu Ziggy Stardust, a empatia criada pela figura do vocalista, com sua voz andrógina, ressoava junto ao brasileiro comum.

Outra influência enorme no grupo foi justamente o movimento que os antecedeu, a Tropicália. Em “Secos & Molhados”, livro de 1974 escrito por Antonio Carlos Morari, João Ricardo falou sobre a importância dos tropicalistas para o grupo:

“Eles foram extremamente importantes para a experiência do Secos & Molhados. O tropicalismo foi uma abertura para a gente ser hoje dessa forma […] Gil, Caetano logo após, tentaram uma conscientização maior da juventude, tentaram acabar com tabus na música e em uma porção de coisas. Hoje o Secos & Molhados é um resultado disso tudo.”

O álbum “Secos & Molhados” foi lançado dia 6 de agosto de 1973, para um sucesso estrondoso, vendendo 300 mil cópias nos primeiros dois meses. Ney Matogrosso contou no livro “Estação Brasil: conversas com músicos brasileiros”, de Violeta Weinschelbaum, que a Continental não estava preparada para tamanho êxito.

“A gravadora achou que venderia 1,5 mil em um ano. Vendeu em uma semana. Como o mercado vivia uma crise de vinil, a gravadora começou a pegar os discos que não estavam vendendo e derreter para fazer o nosso.”

O álbum chegou à marca de um milhão de discos vendidos no primeiro ano, um patamar até então só ocupado por Roberto Carlos. O grupo então embarcou numa turnê internacional, tocando no México, e fizeram uma apresentação histórica no Maracanãzinho em 1974, com 30 mil pessoas dentro da arena e 90 mil de fora.

A treta

Inevitavelmente, como é o caso de todo grupo de sucesso, as intrigas palacianas começaram a tomar forma. João Apolinário arquitetou um plano para colocar Moracy do Val para fora e assumir o posto de empresário do grupo. 

Ney Matogrosso explicou como descobriu sobre esse plano e tomou a decisão sobre seu futuro no grupo em entrevista ao podcast Papo com Clê:

“Decidi que ia sair da banda quando nós fomos pro México e nosso empresário [Moracy do Val] não apareceu por lá porque tinha mudado, o pai do João Ricardo tinha virado nosso empresário no lugar do nosso empresário e eu fui contra. Imediatamente eu fui contra. Aí me disseram: ‘Você assinou pra ele sair’. Eu disse: ‘Eu assinei para ele sair? Eu não quero que ele saia, como que assinei para ele sair?’ Porque me deram uns papéis pra assinar para o escritório continuar funcionando. Só que eu achava que o Moracy ia com a gente. Quando chegou no aeroporto que o Moracy não aparecia, eu já comecei a ficar desconfiado. E quando chegamos no México, eu via o João Ricardo fazia muito interurbano e eu comecei a andar atrás dele pra ouvir o que ele tava falando. E era isso.”

Matogrosso chegou a apelar para João Ricardo não ser manipulado pelo pai, mas ouviu do colega uma resposta lhe dizendo que ele não ousaria deixar uma banda tão bem-sucedida. O cantor provou o português errado, deixando o grupo pouco menos de um ano após do lançamento da estreia.

O Secos & Molhados chegou a fazer um segundo disco, referido como “Secos & Molhados II”, que não teve o mesmo sucesso da estreia por ter sido lançado após o fim do grupo.

Em 1977, João Ricardo ressuscitou o Secos & Molhados, dessa vez sem Ney Matogrosso e Gérson Conrad. Atingiu sucesso com o terceiro disco do grupo, mas perdeu projeção nacional depois disso.

Ney, por sua parte, se tornou um dos mais célebres intérpretes da história da música brasileira, com shows ao vivo lendários ao longo de sua carreira.

Ele e João Ricardo nunca mais foram amigos, como o português deixou claro numa entrevista a Marcelo Pinheiro para a revista Brasileiros em março de 2012:

“Qualquer um que analisar com alguma profundidade o que fiz depois dos Secos & Molhados perceberá que não tenho nada a ver com o que o Ney se tornou. Nossa ruptura se deveu muito mais a essas diferenças. Houve mentiras absurdas sobre nossa separação, questões que não me interessam mais, mas a verdade é que nunca fui adepto daquilo que Ney pretendia fazer. Essa coisa estável de tratar a MPB como uma estatal, trabalhar como um burocrata e agir como um funcionário público, fazendo a mesma coisa por 30, 40 anos. Mas também é fato que Ney foi primoroso nos Secos & Molhados. Cantou minhas músicas como ninguém, e nunca ninguém fez isso melhor do que ele. Hoje, somos dois velhinhos e a memória afetiva das pessoas espera que ainda exista algo entre nós, mas não temos mais relações em nenhum nível. Fizemos algo irrepreensível, irretocável e fantástico, mas tudo isso é passado.”

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

1 COMENTÁRIO

  1. Achei um ótimo resumo da história. Permita-me fazer apenas uma observação: Ney não era “, incapaz de se sentir confortável na sociedade brasileira devido à sua homossexualidade”. Ele era um hippie. Acreditava piamente na filosofia hippie e vivia de acordo com ela. Ele saiu de casa por causa das agressões do pai e a entrada na aeronáutica foi simplesmente para ter um lugar onde ficar. Ele não pretendia ter uma carreira lá. Ney fazia teatro e artesanato concomitantemente. Tanto que ele estava fazendo uma peça de teatro quando se apresentou com os Secos e Molhados pela primeira vez. Informações que li na biografia do Ney Matogrosso. Abraço e obrigada porque o texto está realmente muito bom.

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