“Tropicália ou Panis et Circencis”, uma revolução em forma de disco

Em 1968, estrelas ascendentes da música popular brasileira decidiram não apenas serem bem-sucedidas, mas lendárias

Imagine o cenário: o Brasil está sentindo os efeitos políticos e sociais do golpe militar de 1964, com liberdades individuais cerceadas e censura instaurada em jornais, rádio, filmes e qualquer forma de arte.

Enquanto isso, a música brasileira vivia um momento de guerra cultural contra o rock vindo de fora. Argumentava-se que o estilo musical era uma forma de imperialismo barato sem levar em conta que novos movimentos surgem a partir de uma vontade por parte do público ou classe artística de renovação.

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Eis que surge um grupo de cantores e compositores da nova geração, apadrinhados por luminários da música popular brasileira. Estavam interessados em virar as noções associadas a essas três palavras de ponta cabeça, ao avesso, de trás pra frente, revelando uma nova forma de fazer cultura no país.

Eles ganharam a atenção do país graças aos festivais de música brasileira. No momento mais sombrio da história nacional, lançaram seu manifesto, uma revolução em vinil de 12 polegadas, 33 rotações.

Vamos falar da Tropicália.

Arte para as massas

Não era só de rock que os anos 1960 ficaram famosos. A década também viu uma revolução no campo de composições mais clássicas, com o desenvolvimento do minimalismo e da música concreta.

Os dois movimentos, lançados pela influência dos compositores lendários Karlheinz Stockhausen e John Cage, faziam uso de instrumentos completamente fora do normal para música clássica, sejam instrumentos eletrônicos, objetos domésticos e, principalmente, ferramentas de gravação e reprodução para a construção de peças sem duração fixa, em constante movimento.

Os Beatles foram o principal grupo a tomar influência dessas ideias no contexto da música pop, rendendo experimentos com drones e manipulação de fitas em discos como “Revolver” e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Porém, no Brasil, esse tipo de exploração parecia estar a anos luz do mainstream.

A música popular brasileira, seja na forma do samba tradicional ou ritmos regionais, era visto pelas elites como entretenimento vazio, feito para uma população sem educação. Até a bossa nova, a versão vista como “mais sofisticada” da música de rua carioca, ainda sofria justamente com essa associação à cultura popular.

Ao mesmo tempo, as gravadoras, muitas vezes comandadas por pessoas pertencentes a essas elites, viam qualquer pretensão acima do tradicional com olhar enviesado. Acreditavam que o público médio brasileiro não compreenderia ideias musicais mais cerebrais.

É nesse ambiente que as figuras mais importantes desse movimento surgiram. Caetano Veloso, Maria Bethânia, Tom Zé e Gilberto Gil surgiram em espetáculos de teatro semiamadores em Salvador como “Nós, por exemplo”, “Mora na filosofia” e “Nova bossa velha, velha bossa nova”.

A primeira exposição nacional dessa cena veio em 1965, quando Bethânia foi convidada por Nara Leão, um ícone da bossa nova que assistiu os espetáculos em Salvador, a substituí-la em “Opinião”, no Rio de Janeiro.

A participação de Bethânia nesse espetáculo rendeu a ela seu primeiro sucesso, “Carcará”, uma canção de protesto político composta inicialmente para Leão. Armada de um contrato de gravadora, ela lançou seu disco de estreia em 1965, contendo composições de Caetano, seu irmão, incluindo um dueto, “Sol Negro”, com outra figura importante do Tropicalismo, Gal Gosta.

Enquanto isso, Gil começava a se destacar no programa de TV “O Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina, a quem ele apresentou algumas composições e decidiu apadrinhar o músico baiano.

As figuras principais da Tropicália estavam todas em ascensão no cenário musical brasileiro, mas ainda havia um senso coletivo entre eles de querer mais. Numa entrevista ao site “Tropicália”, Gil falou sobre suas explorações culturais pelo Brasil e o mundo.

“Eu tinha passado um mês no Recife. Em Caruaru, tinha conhecido as cirandas e a Banda de Pífanos. A característica nordestina forte que Pernambuco concentra muito bem tinha me tocado fundo no sentido de buscar ao mesmo tempo a especificidade e a diversidade da coisa brasileira. Mas eu também ouvia os Beatles, e nesse momento saía o Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que me impressionou muito com o arrojo e o experimentalismo de George Martin. Esse disco me deu a sensação de compromisso com a idéia de transformação, de que a música ia além do que tinha se decantado em nós a partir do convencional. Também é dessa época o nosso primeiro contato com as vanguardas da música, as artes plásticas de Hélio Oiticica e Antônio Dias, o Cinema Novo de Glauber Rocha, o Teatro Oficina de Zé Celso. Tudo isso fazia latejar na nossa cabeça e no nosso coração o senso da aventura… Voltei do Recife e conversei muito com Caetano, Torquato, Capinan, Rogério Duarte, sobre estimular no Brasil uma busca mais arrojada e também mais polêmica. Achava que a gente devia chacoalhar os extratos convencionais. Pensei então em convocar uma assembléia de artistas.”

Caetano, falando ao mesmo site “Tropicália”, descreveu os esforços iniciais para dar forma ao movimento:

“A gente já falava nisso em 66. Você pode ler na contracapa do disco ‘Domingo’: ‘vou cantar essas canções que compus tempos atrás à vontade porque hoje estou pensando em coisas e projetos completamente diferentes.’ Gil já tinha feito até umas reuniões no Rio com os outros compositores e músicos pra tentar transmitir o novo modo de ver. Ele marcou na casa de Sérgio Ricardo, chamou Edu Lobo, Chico Buarque, o irmão de Sérgio Ricardo, várias pessoas. Gil queria que todos participassem, mas o pessoal não entendeu. A gente vinha pensando nessas questões já fazia um bom tempo. Eu vinha conversando muito com Rogério Duarte sobre a falta de capacidade de aventura do criador de música popular no Brasil, sobre os resguardos dentro do mundo do bom gosto e do politicamente correto na época. Também sobre o preconceito contra o rock e o iê-iê-iê, que, embora não interessassem tanto em princípio, tinham uma vitalidade que a gente foi descobrindo. Bethânia já havia me chamado a atenção pra Roberto Carlos. Tudo isso entre 65 e 66.”

Gil foi mais seco na caracterização da reação dos convidados também em entrevista ao site “Tropicália”:

“O entusiasmo com o meu modo de pensar ficou restrito aos mais próximos: Torquato, Capinam, Caetano. Os restantes reticenciaram. Uns por razões político-ideológicas. Engajados na luta antiimperialista, diziam que a gente era tutelado pela cultura americana e pela cultura de massa. Outros por razões puramente estéticas, junto com certa ojeriza a coisas estrangeiras. A maioria até mantinha aproximações com o jazz e outras formas internacionais, sobretudo americanas. Mas tinham muita dificuldade em se aproximar do rock, que era então o que mais nos tocava. Por isso, houve uma não adesão da parte deles, quando não uma rejeição profunda mesmo, e em outros casos um não envolvimento e reticências.”

O grupo que acabou se formando em torno dessas ideias consistia de Gil, Caetano, Gal, Bethânia, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto. Eles decidiram partir em frente, fazendo dos festivais de música um campo de batalha. E no caminho encontraram aliados poderosos.

3º Festival da Música Popular Brasileira

Enquanto Gil, Caetano e cia estavam tramando uma revolução cultural, outras pessoas também faziam o mesmo. 

O maestro Rogério Duprat era uma figura notória na música erudita brasileira. Estudou com o famoso compositor Karlheinz Stockhausen na Alemanha, assinou o manifesto Música Nova e compôs uma das primeiras peças musicais eletrônicas já feitas no Brasil, “Klavibm II”, batizada em homenagem ao computador IBM 1620 usado por ele e Damiano Cozzella na composição.

Duprat estava longe dos círculos eruditos desde 1964, quando saiu do seu posto na Universidade de Brasília após a intervenção militar na instituição. Retornando aos holofotes a pedido de Gil e Caetano, ele falou ao site Tropicália sobre o que lhe atraiu aos dois:

“O desejo de abandonar a caipirice da musiquinha de esquina e de absorver a cultura universal, a música eletrônica, os Beatles, integrando novos instrumentos na música popular brasileira. Tivemos então que enfrentar os defensores da tradição, alguns até bem intencionados, mas que preferiam confinar o povo ao morro. Além disso, eu, Júlio [Medaglia], Damiano [Cozzella] e Gilberto Nunes éramos muito ligados aos poetas concretos paulistas. Caetano e Gil já nos conheciam de trilhas de filmes que tínhamos feito. Seria interessante um dia estudar melhor o que nos uniu tanto.”

Ele então se colocou na tarefa de encontrar um grupo de rock capaz de refletir as ideias sendo discutidas por ele com Gil e Caetano. Ao vasculhar os elencos de programas televisivos atrás de candidatos, Alberto Lima Júnior lhe apontou no caminho de um trio de jovens paulistas cuja abordagem anárquica e irreverente lhe deu uma ideia de como trazer ideias da música clássica para o pop: Os Mutantes.

Num depoimento ao site “Tropicália”, Gilberto Gil falou sobre a experiência de conhecer Duprat, Os Mutantes e o ambiente dos festivais de música:

“Havia um clima muito forte de música nova no Brasil, criado pela Bossa Nova, instigado pela Jovem Guarda. E a expectativa era que os festivais fossem um espaço privilegiado pra novas propostas. Aí era possível começar a experimentar aquilo que a gente queria. Caetano fez ‘Alegria, alegria’, eu fiz ‘Domingo no parque’. Conhecemos Rogério Duprat. Imaginei que Rogério pudesse fazer conosco, no caso de “Domingo no parque”, algo do que George Martin fazia com os Beatles: introduzir nos arranjos elementos orquestrais modernos, como os da dodecafonia. Através de Rogério, conhecemos também os Mutantes, que foram fazer ‘Domingo no Parque’ comigo. Pra participar de ‘Alegria, alegria’, Caetano chamou os Beat Boys, um conjunto argentino radicado em São Paulo, que tinha um desenho inspirado no rock, nos Beatles.”

“Domingo no Parque” foi a segunda colocada no 3º Festival de Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Record ao Brasil todo em 1967, com “Alegria, Alegria” de Caetano terminando em quarto lugar.

Agora, todas as figuras principais do movimento haviam se tornado estrelas perante o público, com os álbuns homônimos de Caetano e Gil, lançados em 1968, se tornando hits. Foi nesse ambiente, que o movimento começou a ganhar projeção nacional, com jornalistas se referindo a ele como Tropicalismo.

Caetano comentou ao site “Tropicália” sobre seus sentimentos relacionados ao termo Tropicalismo:

“A palavra Tropicalismo apareceu na imprensa num texto de Nelsinho Motta e noutro de Torquato Neto, parecido com o de Nelsinho. Até hoje acho simpáticos ambos os textos, mas equivocados e ingênuos, tal como achava na época. Eu não sentia tanta atração pela idéia de Tropicalismo, porque botar esse nome parecia que a gente queria fazer um negócio dos trópicos, no Brasil e do Brasil. Não queria que fosse esse o centro da caracterização do movimento, porque ele queria ser internacionalista e anti-nacionalista.  Tendia mais pra o som universal, outro apelido que a gente ouviu e adotou também durante um período, mais pra idéia de aldeia global, de Marshall MacLuhan, muito presente na época. A gente tinha muito interesse nas conquistas espaciais, no rock’n’roll, na música elétrica e eletrônica, enfim, nas vanguardas e na indústria do entretenimento. Tudo isso era vivido como novidade internacional que a gente queria abordar assim desassombradamente. Mas hoje acho que foi o nome mais certo possível.”

Tropicália, um manifesto musical

Vendo que era a hora ideal para apresentar uma frente unida das ideias do grupo, o produtor Manoel Barenbein propôs à Philips a ideia do disco “Tropicália ou Panis et Circencis”.

Em entrevista ao G1, Armando Pittigliani, do departamento de Promoção, Divulgação e Marketing da Philips, lembrou de sua reação à ideia:

“Nós de cara sentimos que ia ser uma coisa que ia mexer com o mercado, porque era Gil, Caetano, Os Mutantes. Eram artistas que estavam na crista da onda.”

Conversando com a Trip, Barenbein falou sobre o clima entre os Tropicalistas:

“Todos nós estávamos emocionados e entusiasmados com aquilo que estava acontecendo. A gente sentiu, antes mesmo de ir para o estúdio gravar, que estávamos fazendo alguma coisa diferente do que existia, diferente do que ocorria na música popular brasileira. Também não havia muito risco naquela invenção. Se desse errado, estava tudo bem. Havia muita confiança no que fazíamos, desde Caetano, Gil, Os Mutantes, Gal, Tom Zé, Torquato, até o Guilherme Araújo, que era a cabeça pensante no processo estrutural e empresarial do grupo.”

Os tropicalistas entraram no Estúdio RGE, localizado na cidade de São Paulo, em maio de 1968. Fariam parte do trabalho Caetano, Gil, Gal, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes, com arranjos de Rogério Duprat e produção de Barenbein.

O resultado foi a culminação de um movimento cultural buscando se apropriar de influências estrangeiras e as aplicando à cultura nacional, tal qual os modernistas de 22. Não é à toa que a capa de  “Tropicália ou Panis et Circencis”, lançado dia 7 de agosto de 1968, traduzia um famoso retrato dos participantes da Semana de Arte Moderna para essa nova realidade.

Gil sentado tal qual Oswald de Andrade. Nara Leão e Capinam, ausentes na sessão de fotos conduzida por Oliver Perroy, representados com fotos emolduradas, uma referência a grupos dadaístas. E em vez do preto e branco das representações clássicas, tons vibrantes de verde e amarelo, dando uma impressão de brasilidade e renovação.

“Tropicália ou Panis et Circencis” não foi um sucesso quando saiu. O movimento enfrentou críticas da ala mais tradicional da música brasileira por serem rock demais, de cantores de protesto como Geraldo Vandré por não serem politizados o suficiente e dos militares justamente pelo contrário.

Em setembro de 1968, Caetano defendeu junto d’Os Mutantes a canção “É Proibido Proibir” no 3º Festival Internacional da Canção, transmitido pela Rede Globo. Ao ser vaiado pela plateia, ele falou, segundo o Memória Globo:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? […] A mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! […] Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”

Dezembro viu a ditadura militar introduzir o AI-5, que cerceou ainda mais a liberdade de expressão, com Gil e Caetano sendo presos no dia 13 daquele mês e mantidos sob cárcere no quartel do exército em Deodoro, no Rio de Janeiro, até fevereiro de 1969. Após um período subsequente de confinamento, os dois partiram para o exílio.

A Tropicália como movimento ativo morreu ali. Porém, o impacto cultural dela permanece até hoje. O disco permanece popular, e a imagem de sua capa se tornou icônica. Falando à Trip, Manoel Barenbein resumiu o legado do álbum:

“Não falaríamos desse álbum se ele não estivesse presente de maneira tão significativa na nossa música. Se você observar, tudo que nasceu com a Tropicália foi repercutindo no decorrer dos anos. As pessoas ainda buscam no manancial que é a Tropicália, que é Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes, informações e água para beber. Isso não morre. Cada um encontra nesse movimento aquilo que te agrada mais, e música é isso.”

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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