Um sábado (7) de chuva incessante em uma cidade grande e uma praça de alimentação de shopping center cheia são inimigos relevantes do lazer. Mas o público que enfrentou esses obstáculos para ver a data paulistana da turnê Six Strings and a Voice, com Anneke van Giersbergen e Marko Hietala, foi compensado pelo esforço – com folga.
A beleza e a sofisticação do Teatro Bradesco, bem como a educação da equipe, ajudaram a transformar o contexto caótico em um passado distante. Apenas um funcionário dava conta de atender o público que pacientemente aguardava a vez de adquirir algum item do merchandising. A curiosidade sobre como seria o retorno de Marko Hietala ao Brasil, pela primeira vez como artista solo e sem a grande estrutura que o acompanhava nas turnês do Nighwish, pode ficar para o momento do show.
*Fotos de Andre Santos.
Marko Hietala desplugado
Após as três chamadas nos alto-falantes para que o público assumisse os respectivos assentos e uma introdução que se restringiu a um apagar de luzes, Hietala e Tuomas Wäinölä, músico de apoio nessa turnê, na banda solo e nas composições começam o show com “Stones”, faixa de abertura de “Pyre of the Black Heart” (2019), primeiro disco solo de Marko. O refrão é simples, repete o título da música com ênfase, e Marko tenta estimular o público para que cante junto, mas não dá certo — a resposta vem em volume baixo. Timidez, não indiferença, pois o aplauso surge sempre em alto e bom som inclusive durante as músicas. Não foram poucas as vezes que os solos precisos e exuberantes de Tuomas receberam o reconhecimento maciço da audiência.
Na sequência vem outra da carreia solo de Marko, “Isäni ääni”, que fala sobre a relação de um filho com o pai. A versão finlandesa é apresentada ainda que exista “The Voice of My Father”, a mesma música em inglês. Essa escolha, não óbvia, talvez ocorra devido ao igualmente inusitado fato de que a primeira tenha o dobro de audiência da segunda nas plataformas de streaming.
Fugir da obviedade parece ter sido a principal preocupação de Marko Hietala para essa turnê. Vir como artista solo, com uma estrutura mais simples do que a dos tempos de Nightwish, não foi suficiente como novidade. Com as duas primeiras músicas, ele já executou metade do que dedicaria à própria carreira no longo show, que passaria com folga os 90 minutos de duração anunciados no release oficial. Ele dedicou o restante do que lhe cabe no repertório a covers variados que, ainda que justificados, são muitos para quem tem algo perto de 20 discos lançados, mais de um reconhecido como clássico.
O amor declarado de Marko pelo universo Black Sabbath iniciou a parte não autoral do show, com “Crazy Train” (Ozzy Osbourne) e “Holy Diver” (Dio). Os registros diferentes desses vocalistas são reproduzidos com talento por Marko, que consegue transitar pelos diferentes registros como tranquilidade e originalidade. Não fica claro se mostrar a versatilidade como intérprete era o objetivo ao montar o repertório. Intencionalmente ou não, a meta foi atingida.
Marko anunciou que o segundo disco solo, que está sendo mixado no momento, sairá em 2024; dele, vem “Two Soldiers”. As conversas antes das músicas são uma atração à parte e ocorrem durante todo o show. Para apresentar a música seguinte, Marko mostra o desapreço que tem por Vladimir Putin, deseja que seha real o boato de que o presidente da Rússia esteja com câncer e anuncia “Children of the Grave”, clássico do Black Sabbath. Mesmo uma música pesada como essa em nada perde a força por ser tocada com violões.
Anneke van Giersbergen chega e não sai mais
A potência sonora é uma constante, seja em músicas mais pesadas como em baladas. Isso se torna explícito em “Child of Babylon”, cover de Whitesnake, momento em que Anneke van Giesbergen sobe ao palco pela primeira vez para não mais sair. A alta qualidade de som do Teatro Bradesco permite que a excelência vocal e instrumental do trio (Tuomas também faz backing vocals) obtenha o destaque adequado. Há um coral à capela ao final da música e o público atento aplaudiu em pé. Nem era necessário se preocupar com o fato de este ser o nono show de uma turnê extensa, que cobrirá 20 datas em 8 países em menos de um mês. Sobrou sintonia e faltou cansaço, ao menos aparentemente, na noite de sábado.
Embora fosse de conhecimento público que agora a configuração do show mudaria, Anneke diz que os rapazes iriam descansar e pede para que voltem mais tarde. Marko deixa a colega muda ao dizer que iriam atrás de cocaína e mulheres no backstage. Não seria a última ocasião em que a comunicação entre eles sofreria um desencontro, mais pela diferença de estilo do que por divergência: Marko por diversas vezes fazia comentários difíceis de serem acompanhados, inclusive por ele. Mas a igualdade na competência compensava tudo.
Quanto a Anneke, já não há quaisquer dúvidas ou incompreensão. Desde a primeira vez em que se apresentou no Brasil, em 2006, ela voltou diversas vezes — sozinha ou acompanhada, com ou sem banda. Essa trajetória foi contemplada no set que apresentou, que incluiu clássicos do The Gathering, temas recentes da carreira solo. Mesmo a única cover que apresentou sozinha, “Cloudbusting” (que substituiu “Like a Stone” do Audioslave, presente em quase todos os shows desta turnê), tem ligação à carreira artística da Anneke, que recentemente fez uma turnê na Holanda apresentando somente canções da Kate Bush.
Novamente, Anneke mostrou desconhecer o que seja desafinação ou limite para voz. Enquanto se torna comum o uso de playback ou diminuição do tom das músicas para acomodar as necessidades de vocalistas, ela cantou “Saturnine” um tom acima da gravação original, ocorrida 23 anos atrás, enquanto dedilhava com habilidade apurada os acordes desta que é uma pérola surgida no contexto da explosão do gothic metal do fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000. A pergunta sobre o que falta para que ela seja reconhecida como uma das maiores cantoras de todos surge — e exige uma resposta.
Trio parada dura
Com “Catch the Rainbow” (Rainbow) o trio parada dura volta ao palco e retornam também os covers, que incluem uma versão surpreendentemente bem-sucedida de “Wasted Years” (Iron Maiden), precedida por uma apresentação confusa de Marko e um trecho de “Wave” (Tom Jobim). O trio executca ainda, na sequência, “Strange Machines” (Gathering) e “Islander” (Nightwish).
Hietala, vale observar, tocou o mesmo número de músicas do The Gathering e do Nightwish — e ainda mais músicas com voz de Ozzy Osbourne do que da banda que o tornou mundialmente famoso. Ainda é de se perguntar se “Dead to the World” (do disco “Century Child”) não seria uma escolha mais apropriada em vez de “Islander”, pelos coros e melodia. Se a turnê com a Tarja, já anunciada para o começo de 2024, influenciou nessa escolha, não é possível dizer. Contudo, o sub aproveitamento do repertório do Nightwish foi o único ponto em que o público perdeu.
O encerramento veio com “The Sound of Silence” (Simon & Garfunkel). Por mais que seja uma música introvertida, fez o show terminar com alta carga emocional, novamente pela abundância de talento que não concorre, se comunica. Em meio a troca de elogios durante o show, Anneke van Giersbergen brincou com Marko Hietala sobre pedidos da plateia para que montassem uma banda e lançassem um disco. É de interesse público que essa brincadeira tenha fundo de verdade.
*Fotos de Andre Santos. Mais imagens ao fim da página.
Anneke van Giersbergen e Marko Hietala em São Paulo
- Local: Teatro Bradesco
- Data: 07 de outubro de 2023
- Turnê: Six Strings and a Voice
Repertórios:
Marko Hietala
- Stones
- Isäni ääni
- Crazy Train (Ozzy Osbourne)
- Holy Diver (Dio)
- Two Soldiers
- Children of the Grave (Black Sabbath)
Anneke van Giesbergen & Marko Hietala
- Child of Babylon (Whitesnake)
Anneke van Giesbergen
- Lo and Behold
- Saturnine (The Gathering)
- Valley of the Queens (Ayreon)
- I Saw a Car
- The May Song (The Gathering)
- Cloudbusting (Kate Bush)
- Hurricane
Anneke van Giesbergen & Marko Hietala
- Catch the Rainbow (Rainbow)
- Wasted Years (Iron Maiden)
- I See Fire (Ed Sheeran)
- Strange Machine (The Gathering)
- The Islander (Nightwish)
- Perry Mason (Ozzy Osbourne)
- Sound of Silence (Simon & Garfunkel)
Mais fotos:
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