Os Beatles se revelaram um sucesso imediato no Reino Unido. “Please Please Me”, seu álbum de estreia, atingiu o topo das paradas. Tudo que a banda lançava era sucesso e o plano para o resto de 1963 envolvia não tirar o pé o acelerador.
Singles deveriam ser gravados e um segundo disco — que se tornaria “With the Beatles” —, lançado até o final do ano. Enquanto isso, Brian Epstein tentava preparar o terreno para uma das façanhas mais ambiciosas da história da música popular.
Essa é a história de como John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr conquistaram a América.
Os reis da cena
No verão inglês de 1963, a Beatlemania estava tomando conta do país em meio a vários escândalos em outras áreas. Isso transformou o quarteto de Liverpool em uma alternativa positiva à realidade.
Não era somente a música que os tornavam atrativos ao público. O mesmo senso de humor responsável por convencer George Martin a lhes dar uma chance na EMI agora se mostrava seu cartão de visitas.
Os Beatles ao longo do ano se tornaram figuras semirregulares em programas da BBC, dando entrevistas nas quais se comportavam como uma trupe de humor tanto quanto uma banda. Eles zoavam um ao outro e ao apresentador, respondiam cartas do público e tocavam pedidos ao vivo. Estavam preparados para essa última parte graças ao seu período na Alemanha, no qual precisavam tocar por horas a fio qualquer coisa minimamente popular.
Isso incluía Elvis Presley, Buddy Holly, Little Richard, canções obscuras de R&B, números de musicais da Broadway, versões de girl groups e composições românticas. O repertório dos Beatles era, aparentemente, infinito — e o público inglês se via cada vez mais apaixonado por eles.
Entretanto, o ritmo alucinante de shows e aparições no rádio não atrapalharam a principal atividade de John Lennon e Paul McCartney no período. Segundo o cantor inglês Kenny Lynch, que acompanhou o grupo na turnê pelo Reino Unido naquele ano, os dois não paravam de compor. Ele contou ao autor Bob Spitz no livro “The Beatles – A Biografia”:
“Compunham todos os dias, no ônibus, como se fossem relógios. Era sempre a mesma rotina: um tocava e o outro escrevia letras ou mudanças nos acordes.”
O sucesso os encorajou a experimentar mais nas composições, seja usando estruturas incomuns de acordes, trabalhando mais nos refrães ou se concentrando nas pontes das canções. O primeiro grande resultado dessas sessões no ônibus foi o single “From Me to You”, que atingiu o sexto lugar nas paradas inglesas em abril, vendendo 200 mil cópias na primeira semana.
Três dias antes do lançamento do compacto, em 8 de abril, John havia se tornado pai. Cynthia Lennon deu à luz a John Charles Julian Lennon, o que deu uma pequena trégua ao estado conturbado do casamento dos dois. O Beatle via a esposa grávida até então como uma âncora, lhe impedindo de aproveitar o sucesso da melhor maneira possível.
Não que se comportasse dessa maneira. Quando os Beatles tiraram férias ao final de abril, John foi para a Espanha com Brian Epstein, sem Cynthia ou Julian. Paul, George e Ringo por sua vez decidiram pelas Ilhas Canárias, onde se hospedaram na casa da família do velho amigo da Alemanha, Klaus Voormann.
No retorno das férias, Harrison foi jurado de um concurso musical no norte da Inglaterra. O prêmio principal era um contrato com a Decca Records, que meses antes havia recusado os Beatles. Desde então, com o sucesso do quarteto, havia uma corrida do ouro em curso entre gravadoras: toda e qualquer banda com a mínima associação ao conjunto de Liverpool conseguia um acordo.
Quando Dick Rowe, presidente da Decca, pediu que George lhe apontasse os grupos mais talentosos no concurso, o guitarrista lhe respondeu (via “The Beatles – A Biografia”) com um nome ausente da competição:
“Para falar a verdade, ouvimos em Londres um grupo excelente chamado The Rolling Stones.”
Rowe nem esperou o concurso terminar para pegar o primeiro trem com direção a Londres.
O verão inglês viu uma leva de lançamentos ameaçando a hegemonia dos Beatles. Tentando contra-atacar, a EMI lançou um compacto duplo contendo quatro canções que já haviam sido lançadas em “Please Please Me”: “Twist and Shout”, “A Taste of Honey”, “Do You Want to Know a Secret” e “There’s a Place”.
A gravadora não tinha certeza sobre a eficácia dessa estratégia. Mesmo assim, vendeu 120 mil cópias na primeira semana, se tornando o primeiro compacto duplo na história a atingir o Top 10 britânico. Os Beatles eram uma febre.
Trabalhando duro
Tão logo lançaram “From Me to You”, os Beatles precisavam de um single sucessor. Paul McCartney tinha um conceito baseado em uma música de chamado e resposta que havia ouvido de Bobby Rydell. John Lennon achou a ideia idiota, mas mesmo assim concedeu que havia potencial na letra.
A dupla finalizou a canção durante um raro dia de folga na casa da família McCartney em Liverpool. Quando George Martin escutou pela primeira vez, declarou ser uma das melhores composições feitas por eles até ali.
“She Loves You” foi o começo da Beatlemania como conhecemos hoje. As encomendas pré-lançamento do compacto atingiram 235 mil cópias, um patamar impensável até então. Era a maior procura de qualquer artista na história da EMI.
Como camarão que dorme a onda leva, os Beatles emendaram o lançamento de “She Loves You” em 23 de agosto com sessões para o segundo disco em Abbey Road. O plano sempre foi de lançar dois álbuns por ano naquela época, além de compactos intercalados, mas a principal diferença dessa vez era o tempo.
“Please Please Me” foi gravado em maior parte durante uma sessão de um dia, algo que destruiu a garganta de John Lennon. Agora, eles tinham alguns meses para trabalhar com calma.
Eles já haviam gravado covers de “You Really Got a Hold on Me” (Smokey Robinson), “Money (That’s What I Want)” (Barrett Strong), “Devil in Her Heart” (The Donays), “Till There Was You” (Meredith Willson), “Roll Over Beethoven” (Chuck Berry) e “Please Mr Postman” (Marvelettes) além das originais “It Won’t Be Long” e “All My Loving”.
Essas duas originais se provaram passos adiante na evolução de Lennon e McCartney, injetando o formato pop com inventividade até então nunca vista. As sessões de setembro ficaram encarregadas de dar os toques finais à tracklist, com a primeira contribuição de George Harrison em “Don’t Bother Me”, além da faixa cantada por Ringo – “I Wanna Be Your Man”, que curiosamente foi dada de presente aos Rolling Stones e se tornou o primeiro hit deles.
O lançamento do segundo disco dos Beatles, “With the Beatles”, também contou com um toque diferenciado na sua apresentação. Normalmente, capas de singles ou LPs pop eram feitas de maneira um tanto despojada, trazendo as bandas retratadas em meio à paisagem urbana – seja na rua ou do alto de estacionamentos.
Buscando algo fora do comum, Brian Epstein procurou o fotógrafo inglês Robert Freeman, que o havia impressionado com seus retratos preto-e-branco do saxofonista John Coltrane.
Os Beatles, por sua vez, tiveram voz ativa na elaboração do conceito, mostrando as fotos feitas por Astrid Kirchherr enquanto estavam em Hamburgo.
Ao contrário da imagem colorida usada por artistas pop, a capa de “With the Beatles” trazia o quarteto num esquema chiaroscuro, com apenas seus rostos visíveis. As expressões eram sérias, mas não havia carranca para parecer durão.
As multidões na Inglaterra acompanhando o grupo já eram tamanhas a ponto de os músicos não se locomoverem com facilidade. Quando retornaram de uma turnê na Suécia ao final de outubro, os Beatles foram recepcionados no aeroporto em Londres por milhares de fãs. Essa comoção chamou a atenção do apresentador americano Ed Sullivan, que estava no país à procura de artistas.
Até então, os Beatles eram virtualmente desconhecidos nos Estados Unidos por conta de briga de gravadora. A EMI havia comprado a Capitol Records no final da década de 1950, o que significava uma distribuidora gigantesca do outro lado do Atlântico. Entretanto, a contraparte americana tinha autonomia de decidir quais lançamentos eram satisfatórios — e se mostrava indisposta a lançar qualquer artista britânico na América.
Buscando uma alternativa, Brian Epstein assinou um contrato com a Vee Jay Records. Porém, a empresa teve suas reservas arruinadas por um fim de semana desastroso de seu presidente em Las Vegas. Sério.
“With the Beatles” e dominação multimídia
Ao fim de outubro de 1963, os Beatles firmaram um acordo com a United Artists para a produção de um filme estrelado pela banda. Eles estariam no cinema, na vitrola e nas TVs, com uma apresentação no Royal Variety marcada e uma oferta para tocar no “Ed Sullivan Show” na mesa.
O problema continuava sendo a Capitol. A Vee Jay havia falido e um contrato com a Swan para distribuição na Costa Leste falhou miseravelmente. Quando Brian Epstein viajou até Nova York na primeira quinzena de novembro, ele sequer encontrou um disco dos Beatles em lojas da cidade.
O impasse se resolveu à moda antiga: na marra. Até então, a EMI nunca havia forçado a Capitol a lançar nada, dando aos americanos discrição na hora de selecionar projetos. Contudo, a postura perante a artistas pop ingleses irritou a matriz a ponto de baixarem um ultimato: os Beatles seriam distribuídos nos EUA.
O primeiro single que decidiram lançar foi “I Want to Hold Your Hand”. Não havia expectativas. Prensaram cinco mil cópias, sequer se dando o trabalho de ver os pedidos antecipados de 700 mil no Reino Unido para o compacto e 265 mil para “With the Beatles”.
“With the Beatles” saiu dia 22 de novembro de 1963, vendendo meio milhão de cópias no primeiro dia. Logo, se tornou o segundo disco na história do Reino Unido a ter um milhão de unidades comercializadas, após a trilha do musical South Pacific. O álbum tirou “Please Please Me”, da própria banda, do topo das paradas britânicas e permaneceu na posição por 21 semanas.
Em dezembro, cópias importadas de “I Want to Hold Your Hand” começaram a ser tocadas nas rádios americanas e a resposta do público foi imediata. A Capitol precisou adiantar o lançamento do compacto para 27 de dezembro.
Nos primeiros três dias após o lançamento nos EUA, “I Want to Hold Your Hand” havia vendido 250 mil cópias. Vinte vezes a previsão inicial da Capitol.
O compacto finalmente chegou ao topo das paradas americanas em 1º de fevereiro de 1964, bem a tempo da apresentação dos Beatles no “Ed Sullivan Show”.
A partir daí, o mundo pertencia ao quarteto de Liverpool.
Beatles — “With the Beatles”
- Lançado em 22 de novembro de 1963 pela Parlophone / EMI
- Produzido por George Martin
Faixas:
- It Won’t Be Long
- All I’ve Got to Do
- All My Loving
- Don’t Bother Me
- Little Child
- Till There Was You (Meredith Willson)
- Please Mr. Postman (The Marvelettes)
- Roll Over Beethoven (Chuck Berry)
- Hold Me Tight
- You Really Got a Hold on Me (Smokey Robinson)
- I Wanna Be Your Man
- Devil In Her Heart (The Donays)
- Not a Second Time
- Money (That’s What I Want) (Barrett Strong)
Músicos:
- John Lennon (vocais, guitarra, violão, gaita na faixa 5, violão de nylon na faixa 6, pandeiro na faixa 4)
- Paul McCartney (vocais, baixo, piano na faixa 5, claves na faixa 4)
- George Harrison (guitarra; violão; vocais nas faixas 4, 8, 10 e 12; violão nylon na faixa 6)
- Ringo Starr (bateria, pandeiro, maracas, vocais na faixa 11, bongô árabe nas faixas 4 e 6)
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