Cowboy Junkies só precisou de um microfone e uma igreja para fazer “The Trinity Session”

Esforços de preservação da música folk americana levaram grupo canadense a atingir o estrelato

Alguns discos não têm uma história dramática por trás para explicar sua fama. O processo artístico não necessita de conflito ou tragédia para informar o conteúdo de algo. Às vezes, como no caso do Cowboy Junkies em “The Trinity Session”, o método esparso da gravação, remetendo aos primórdios da tecnologia, é suficiente.

Isso e uma cover de “Sweet Jane” capaz de conseguir a aprovação de Lou Reed.

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Esforço de preservação

Em 1928, Carl Engel, diretor da divisão musical da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, anunciou um projeto para registrar as diferentes formas de música folk do país. Ao seu ver, essas estariam sob ameaça.

Três anos antes, o “Grand Ole Opry” começou a ser transmitido para todo o sul do país direto do Ryman Auditorium em Nashville. O programa, que existe até hoje, consistia em apresentações de artistas country – denominação então aplicada ao interior – em torno de um só microfone no palco diante de uma plateia.

A disseminação desse tipo de música não é necessariamente ruim, mas o sucesso estrondoso do programa criava um perigo. Outras expressões musicais regionais menores poderiam ser deixadas para trás em favor de algo mais acessível, com a promessa de fama e riqueza para músicos.

Inicialmente, Engel recrutou Robert Winslow Gordon para a tarefa, mas a quebra da Bolsa em 1929 acabou dizimando os fundos públicos e o pesquisador deixou o cargo em 1932. A sorte foi que John Avery Lomax, até então envolvido em seu próprio projeto de gravações pelo sul dos EUA com a ajuda de sua família, ofereceu compartilhar seu material em troca de poder usar o equipamento de ponta à disposição na Biblioteca.

Grande parte do que conhecemos do blues surgiu a partir dos esforços do pesquisador e de outros como ele. John Lomax e seu filho, Alan, foram os primeiros a apresentar a obra de um presidiário da Louisiana chamado Huddie William Ledbetter ao grande público, em 1933. Mais conhecido como Lead Belly, suas gravações foram seminais para o estabelecimento do que conhecemos como música folk americana.

O que se sucedeu a partir desse trabalho foi um dos registros mais compreensivos da cultura até então. Lomax viajou não só pelos EUA, mas também por países do Caribe, registrando expressões musicais nas Bahamas e Haiti. Ele foi responsável pela primeira biografia sobre Jelly Roll Morton, um dos pioneiros do jazz.

Nessa época, gravação musical era algo limitado pela tecnologia. Não havia mesa de quatro canais; era tudo feito de uma vez. Isso também significava apenas um microfone registrando o arranjo inteiro ao mesmo tempo. 

Essa realidade apresentava um desafio especialmente para vocalistas. Microfones dessa época ainda apresentavam limitações em termos do espectro de frequências, então cantores eram obrigados a se apresentar quase colados na cápsula, e usar um registro mais suave.

Tudo isso contribuiu para que se cultivasse nas décadas posteriores uma estética em torno dessas gravações primordiais.

Laços familiares

São ao todo seis irmãos na família Timmins, todos nascidos em Montreal, mas o primeiro a conseguir qualquer tipo de notoriedade na música foi Michael. Ele e o amigo Alan Anton formaram o grupo pós-punk Hunger Project em 1979, numa busca de reproduzir no Canadá a explosão musical do outro lado do Atlântico. 

Entretanto, não conseguiram atenção na terra natal, por uma razão que Michael apontou em entrevista de 1988 à Time:

“Os jovens ingleses tinham muita coisa para se reclamar. A gente não tinha. Éramos classe média. Não estávamos tão ligados na filosofia da música quanto à possibilidade de expressão.”

Eles então se mudaram para Londres e esbarraram na explosão do New Romantic. A reação de Michael e Alan a esse movimento abertamente pop foi nojo. Completamente desiludidos com rock, eles formaram o grupo Germinal, descrito como experimental pelo NME e pelos dois como uma tarefa para a plateia.

Durante sua residência em Londres, Michael trabalhou em uma loja de discos, e com isso foi exposto ao blues pela primeira vez, através de gravações rudimentares feitas por pesquisadores tais quais John Lomax. Timmins ficou particularmente impressionado com Lightnin’ Hopkins. Ele disse, ao No Depression, sobre o músico:

“Ele conseguia dizer mais com duas notas do que Cecil Taylor conseguia num solo inteiro.”

Em 1985, Timmins e Anton retornaram ao Canadá e recrutaram o irmão mais novo de Michael, Peter, para tocar bateria. O objetivo seria aplicar o espírito de improvisação do jazz ao blues de raiz que tanto lhes marcou.

Como Michael caracterizou à Time em 1988:

“Nós tiramos a agressividade do nosso organismo. Agora podíamos pensar sobre nossa música – e deixar espaços nela.”

Faltava apenas uma voz. Margot Timmins era dois anos mais nova que Michael e cresceu no mesmo ambiente musicalmente onívoro do irmão. Apesar disso, nunca foi uma pessoa particularmente disposta a fazer música. Ela havia apenas cantado em peças da escola e estava estudando para se tornar assistente social.

Ela descreveu sua entrada no grupo ao No Depression:

“Estava contemplando cursar pós-graduação, ficar na escola. Esse era o caminho seguro. Eu nunca quis ser música ou estar no palco. Mas aí as peças começaram a cair no lugar. Michael começou a ouvir algo no que estavam tocando de improviso. Ele queria um tipo mais bonito de voz feminina.”

O estilo característico do Cowboy Junkies surgiu por pura necessidade. A banda ensaiava numa garagem nos primórdios e a paciência dos vizinhos é um bem finito. Michael disse ao No Depression:

“Percebemos que precisávamos maneirar. Uma coisa levou à outra: Margo começou a notar que sua voz era mais eficaz num registro mais quieto. Aí nós começamos a notar que se a banda conseguisse operar por baixo da voz da Margo, o som seria mais eficaz. Pete começou a usar escovas – ele estava aprendendo a tocar bateria naquele ponto. Tudo meio que se acalmou. Aprendemos a tocar com menos volume.”

Logo no primeiro show do Cowboy Junkies, estava na plateia Peter Moore, um nerd de gravação que se especializou em produzir bootlegs de shows. Fã inveterado de Billie Holiday, ele era devoto da técnica de gravação com um só microfone, usando-a para gravar desde jazz até música folclórica de nativos em reservas de Ontario. Levando isso em conta, suas ambições de virar produtor eram óbvias, e o cara viu na banda o ato perfeito para materializar suas teorias.

Viagem ao sul

O disco de estreia do Cowboy Junkies, “Whites Off Earth Now!!” (1986), foi gravado na garagem onde o grupo ensaiava. O desejo de preservar o ambiente intimista dos ensaios foi justamente o que aproximou a banda de Moore. O repertório consistiu de principalmente de canções de blues mais tradicionais, com as exceções sendo uma cover de “State Trooper” – lançada por Bruce Springsteen no álbum “Nebraska” – e a única música original deles, “Take Me”.

O lançamento vendeu pouco – apenas três mil cópias no selo independente montado por Michael Timmins e Alan Anton anteriormente – mas deu a oportunidade de sair em turnê. Eles tocaram muito pelo Canadá, mas foi no sul dos EUA onde a banda encontrou um público interessado de verdade.

Michael Timmins escreveu no seu blog em 2014 relembrando a turnê do primeiro disco:

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“Enquanto a gente fazia turnê de ‘Whites’ a gente passou muito tempo em estados do sul, especialmente Virginia, Georgia e as Carolinas. Por alguma razão, donos de clubes nesses estados gostaram do que estávamos fazendo, então passamos muito tempo atravessando as rodovias cobertas de kudzu [planta nativa da região] que cortavam pelo coração da velha Confederação. Esses eram os dias em que passar a noite num quarto de hotel significava a diferença entre comer no dia seguinte ou pagar pela gasolina pra chegar na próxima cidade, então passamos muito tempo dormindo no chão de promotores amigáveis, fãs, garçonetes e barmen.”

Essas hospedagens na casa de quem estivesse disposto a lhes ceder abrigo tiveram seu efeito na forma de apresentar ao grupo música country. Timmins continuou no blog:

“Não era como se todo mundo que a gente encontrou fosse vidrado em country, mas crescendo no Sul, a maioria das pessoas havia sido mais exposta do que a gente, que cresceu num subúrbio de Montreal. Inevitavelmente havia em cada coleção um ou dois grandes discos de country roubados de seus pais na hora da mudança. Entre o disco mais recente do Death Piggy ou ‘Giant Steps’ do Coltrane estavam coisas como ‘Honky Tonk Heroes’ do Waylon Jennings, ou o ‘Greatest Hits’ da Patsy Cline, The Louvin Brothers, The Carter Family, Bill Munroe, Hank Williams, Willie Nelson, Merle Haggard e a lista continua. Numa das viagens a gente passou por Washington DC especificamente para passar na loja do Instituto Smithsonian e comprar uma cópia de ‘Collection of Classic Country Music’. Essas fitas mal saíam do toca fitas da van, e quando saíam a gente estava vasculhando o rádio por alguma estação local tocando um disco velho da Loretta Lynn.”

Quando os Junkies retornaram ao Canadá em 1987, eles tinham uma ideia clara do que seria seu segundo disco. E uma nova leva de fãs locais barulhentos demais para o gosto deles. Ao invés de fazerem shows em locais maiores, eles decidiram adotar um bar fora de mão como base de operações enquanto aprimoravam o repertório.

Sobre o processo, Michael Timmins escreveu:

“A gente trabalhou nas canções do disco seguinte o verão inteiro. Eu havia sido inspirado pelo que estava escutando e comecei a compor letras novamente depois de seis anos parado. Margo havia sido acometida pela inspiração e começou a vir aos ensaios com algumas ideias. À medida que as canções começaram a tomar forma, o formato geral do álbum também veio à tona. Não apenas muitas das canções refletiam nosso amor nascente por country e nossas experiências no último ano, mas cada canção parecia abordar temas clássicos de composições americanas.”

Cada canção, fosse original ou cover, cobria um tema recorrente diferente no cancioneiro dos EUA ou uma tradição desse. Blues, folk, country, rock’n’roll, Tin Pan Alley. O grupo até reconheceu a importância de influências mais recentes com a inclusão de uma faixa originalmente planejada para “Whites Off Earth Now!!”: “Sweet Jane”, do Velvet Underground.

Lançada originalmente pela banda de Lou Reed no disco “Loaded” (1970), a faixa havia se tornado ao longo dos anos um pequeno clássico de bandas de bar pelos EUA, graças ao seu riff característico e refrão. No entanto, os Junkies preferiram se inspirar na versão do disco “1969: The Velvet Underground Live”, que é mais lenta e adequada ao estilo deles.

Montando um espetáculo

O passo seguinte foi recrutar músicos de apoio. Kim Deschamps ficou encarregado de pedal steel, dobro e lap steel. Jaro Czerwinec – que tocava em grupos tradicionais de imigrantes ucranianos – era o cara no acordeão. Eles encontraram Jeff Bird inicialmente para a rabeca, mas receberam a surpresa agradável de sua gaita e bandolim. O conjunto foi completo por Steve Shearer na gaita de blues e o primogênito dos Timmins, John, na guitarra.

A maioria dos ensaios eram feitos através de fitas ou telefone, uma vez que ninguém tinha como ir e vir de onde moravam em Ontario. Bird e Deschamps conseguiram ensaiar com a banda ao vivo algumas vezes, o segundo até tocando em alguns shows. Entretanto, na hora do vamos ver a ideia do conjunto completo ainda era uma incógnita.

Enquanto os Junkies resolviam o aspecto da banda, eles também confabularam com Peter Moore sobre o método de gravação. Ambas as partes concordaram em manter o esquema de “Whites Off Earth Now!!” – um microfone e dois canais de áudio – pois ficaram felizes com o resultado do disco de estreia e também por não conseguirem arcar os custos de um estúdio profissional.

Moore no ano desde então havia feito uma série de experimentos acústicos por Toronto, encontrando na Church of the Holy Trinity o ambiente ideal para gravação sonora. O problema para o grupo era: a arquidiocese da cidade era conhecida por torcer o nariz para música secular. Uma banda chamada Cowboy Junkies não teria a menor chance de conseguir autorização.

Logo, viraram The Timmins Family Singers. Não iriam gravar um álbum de rock, e sim uma coleção de canções natalinas para a CBC. Tudo balela, mas a arquidiocese autorizou.

O nome do disco, “The Trinity Session”, se encontra no singular pois tudo foi gravado em um dia, 15 de novembro de 1987. Começaram de manhã, encontrando a posição perfeita para o microfone capturar a acústica da igreja, ensaiando ao longo de seis horas o material. O objetivo era encontrar o melhor equilíbrio possível entre os instrumentos, a voz de Margo Timmins e a única fonte de captura sonora.

Os vocais de Margo eram passados por um PA, para se equiparar aos outros instrumentos. As canções com arranjos envolvendo menos elementos foram gravadas primeiro, dando tempo para as questões logísticas serem resolvidas uma a uma. O último problema, o limite de tempo disponível na igreja, sumiu com um suborno de cinco dólares ao segurança.

Apesar disso, nem tudo foi gravado naquele dia. A faixa de abertura, uma cover da canção tradicional “Mining For Gold”, precisou de uma sessão adicional. Numa entrevista à Sound on Sound, Peter Moore falou:

“A gente ficou sem tempo e é a capella, então falei: ‘A gente não consegue fazer hoje por causa de todos os problemas, então eu volto outro dia com a Margo’. Ela não está cantando através do PA, por isso o vocal soa diferente de todo o resto. Ela está cantando naturalmente direto no Calrec Soundfield [microfone usado na gravação].”

“The Trinity Session” foi lançado em 26 de novembro de 1988, para um sucesso inesperado. O álbum atingiu a 26a posição da Billboard 200 graças ao sucesso de “Sweet Jane” em rádios universitárias. A cover até recebeu o aval do compositor original, com Lou Reed dizendo se tratar da “melhor e mais autêntica versão que já ouvi”, segundo a BBC.

A estética esparsa ajudou a dar ao trabalho uma qualidade atemporal que ajudou “The Trinity Session” a vender bem ao longo dos anos. Em 1996, a obra recebeu um disco de platina nos EUA por vender mais de um milhão de cópias.

Os Junkies nunca conseguiram replicar o sucesso de seu segundo disco, seja em vendas ou até mesmo êxito técnico. O lançamento subsequente deles, “The Caution Horses”, saiu após várias tentativas frustradas de gravação, e mostrou uma abordagem mais country rock tradicional, ao invés da intimidade de “The Trinity Sessions”.

Apesar de demonstrarem em entrevistas na virada do milênio frustração com o espectro de seu maior sucesso pairando sobre eles, os Junkies fizeram as pazes com o passado eventualmente. Em 2008, eles retornaram à Church of the Holy Trinity, dessa vez sem apelar ao nome Timmins Family Singers, para o disco e documentário “Trinity Revisited”, no qual reinterpretam as canções, auxiliados por Jeff Bird, Natalie Merchant, Ryan Adams e Vic Chesnutt.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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