Lá pelas tantas de seu show realizado no último sábado (11) na Vip Station, em São Paulo, Glenn Hughes narrou uma história que, segundo ele, raramente é contada — embora tenha sido compartilhada por este site em 2017. O lendário músico das formações MK3 e MK4 do Deep Purple, também com passagens por várias outras bandas e uma carreira solo bem produtiva, confidenciou ter chamado seus ex-colegas Jon Lord (teclados) e David Coverdale (vocais) para uma conversa em meados de 2008.
A ideia era reunir a formação MK3 do Purple ao lado de Ritchie Blackmore (guitarra). Ao que tudo indica, Ian Paice (bateria) era carta fora do baralho, pois, à época, era o único músico a seguir na banda.
E por que não deu certo? Ninguém conseguiu falar com Blackmore pelo telefone. Não ficou claro pelo relato de Hughes se isso ocorreu em função de ser complicado contatar o guitarrista ou se os colegas não tiveram culhões de fazer o convite.
Fato é que Lord faleceu quatro anos depois, impossibilitando de vez qualquer reunião mais abrangente. Além disso, Ritchie está quase em ritmo de aposentadoria, apesar de ter lançado um álbum com o Blackmore’s Night (“Nature’s Light”) em 2021; por sua vez, David sempre optou por se dedicar ao Whitesnake — e está fora dos palcos há algum tempo devido a problemas de saúde.
Tudo isso nos leva à arrepiante conclusão do relato de Glenn:
“Posso ser o último cara a cantar essas músicas (das formações MK3 e MK4 do Deep Purple) de novo. Farei isso por São Paulo. Quero honrar essa música que criei com Jon, Ritchie e David.”
Foi com essa carga emocional que Hughes apresentou à capital paulistana seu show “Classic Deep Purple Live”, com repertório focado justamente nesta fase da banda homenageada. O primeiro álbum do período, “Burn” (1974), é o mais celebrado, devido a seus (quase) 50 anos de lançamento — e sua popularidade, é claro —, mas “Stormbringer” (1974) e “Come Taste the Band” (1975) também tem suas canções representantes. E sobra até espaço para “Highway Star”, que nem foi gravada com Glenn, mas também é icônica.
Hammerhead Blues e Red Water
Antes do veterano inglês subir ao palco da Vip Station, havia duas atrações de abertura: Hammerhead Blues (de São Paulo) e Red Water (de Ribeirão Preto). Ambos os grupos estão na ativa há aproximadamente uma década e partilham da paixão por rock and roll à moda antiga, ainda que com influências distintas.
O Hammerhead Blues, primeiro a se apresentar, soa ao estilo de grupos do fim dos anos 1960 e início dos 1970. Remete ao próprio Trapeze (do qual a estrela da noite fazia parte antes de se juntar ao Deep Purple), além de Blue Cheer, Grand Funk Railroad e por aí vai.
Os três músicos claramente dominam suas funções. Otavio Cintra, também vocalista, é do tipo “baixista-baixista”: sabe como ocupar o som sem recorrer a maneirismos daqueles que só migram para as quatro cordas após não darem certo na guitarra. Luiz Cardim, quase um Jake E. Lee tupiniquim, é o grande destaque do grupo: sua habilidade nas seis cordas parece conduzir toda a química no palco. Willian Paiva, baterista, toca tão forte que nos faz pensar se, mesmo ainda jovem, precisou tomar analgésicos após o show.
A grande lacuna a ser preenchida é a mesma de outras bandas com instrumentistas tão competentes: a capacidade criativa. Algumas canções, como “Around the Sun” e “Traveller”, até começam interessantes, mas logo passam a agregar exibições técnicas variadas — que rendem aplausos da plateia, é verdade — e abdicam de ser memoráveis em melodia. Enquanto vocalista, Cintra fica um pouco aquém nesse sentido; embora seja afinado, ousa pouco em suas linhas. “Thrill of the Moonrise” foi talvez a única música do set com potencial para grudar na mente. Seguindo um caminho que priorize as composições, o trio terá tudo para decolar.
Repertório — Hammerhead Blues:
- Moontale
- Age of Void
- Around the Sun
- Traveller
- Thrill of the Moonrise
- Drifter
Por sua vez, o Red Water levou a sério aquela história de “pontualidade britânica”, já que estava abrindo para um artista inglês: deu início a seu show dez minutos antes do horário anunciado (às 19h50, em vez de 20h). Formado por Lucas de Castro (voz), Adonai (guitarra), Bruno Shimabukuro (guitarra), Igor Sacconi (bateria) e Paulo Alcantarilla (baixo) o grupo bebe de influências que vão de Aerosmith a Quireboys, seja em estética musical ou visual. Teve gaita, slide na guitarra, chapéus de variados modelos e tudo o mais.
Só faltou o principal: definição sonora. A banda sofreu bastante com a timbragem de seus instrumentos. As guitarras estavam sem peso, o baixo mal apareceu e, por vezes, era complicado até entender o que Lucas de Castro cantava ou mesmo falava diante do microfone. Com tudo misturado, embolava de vez em quando. Isso dificulta a análise, especialmente por não se saber se isso ocorreu por escolha dos músicos ou problemas técnicos — Lucas chegou a dizer, sem detalhar, que desafios precisaram ser superados para que a apresentação acontecesse.
Ainda assim, deu para notar que há potencial no quinteto. Fragilidades sonoras à parte, sabem fazer bom uso dos elementos do hard/blues rock sem soarem caricatos. Deu para notar em canções como as enérgicas “Back Block Drive” e “Martial Case” (talvez não por acaso posicionadas na abertura e no encerramento) e a carregada “It’s a Shame” — cujo final ficou marcado por uma confusão na plateia após, supostamente, um homem ter empurrado várias pessoas na área da frente, incluindo mulheres. Paulo Alcantarilla chegou a disparar ofensas no microfone contra o cidadão, que precisou ser retirado.
Repertório — Red Water:
- Back Block Drive
- Ember
- Hot Roadside Stew
- It’s a Shame
- Nightingale
- Entertain Me
- Martial Case
O imparável Glenn Hughes
Artistas com idade próxima à de Glenn Hughes que seguem na ativa estão, em maioria, num ritmo mais lento de atividades. É natural e certamente não dá para julgar. Mas o lendário músico inglês é tão cheio de vida que chegou a sair da banda que integrou nos últimos anos, o The Dead Daisies, porque seus colegas — todos eles mais jovens — queriam dar uma pausa durante o ano de 2023.
Hughes parece saber que, mesmo com sua saúde em dia, não tem mais tanto tempo neste planeta. Em agosto último, completou 72 anos muito bem vividos e com altos e baixos causados pela dependência química — ele está sóbrio há 25. Considerando o fundo do poço ao qual chegou, é de se admirar que ainda esteja entre nós e tão bem.
Ciente de tudo isso, Glenn quer tocar. Somente em 2023, foram mais de 60 shows na América Latina, Norte e Europa. Ao deixar o Brasil após sete apresentações (oito se a data em Curitiba não tivesse sido cancelada em função de uma forte gripe), ainda seguirá por Argentina, Chile, Costa Rica e México. Para 2024, tem compromissos marcados entre fevereiro e junho. Também no ano em questão, lançará um álbum com o Black Country Communion. Já planeja um disco solo para 2025.
E é só o ver em cima do palco para entender por que tamanha vontade em tocar. Hughes está melhor do que nunca. Sua banda formada por Søren Andersen (guitarra), Ash Sheehan (bateria) e Bob Fridzema (teclados), também. Potente, o trio de colaboradores emula com perfeição — e até certa identidade, especialmente pelo timbre aberto da caixa de Sheehan — as performances de Ritchie Blackmore, Ian Paice e Jon Lord.
Se alguém estava receoso de que o show em São Paulo seria afetado por algum resquício da gripe de Glenn, os primeiros segundos de “Stormbringer” derrubaram a tese. Bastou um agudo no refrão da canção, acompanhada fortemente pelos fãs, para mostrar que o homem estava de volta. E tão feliz a ponto de não conseguir tirar o sorriso do rosto.
“Might Just Take Your Life” e “Sail Away”, primeiras representantes de “Burn” na noite, ofereceram um pouco de cadência ao set. Cada uma a seu modo: a primeira, em pegada bluesy comandada pelos teclados de Fridzema; a segunda, na forma de melodias abertas que fazem desta a canção favorita de Hughes no lendário disco de 1974.
“Vocês vão me fazer chorar”
A reação da plateia que lotou a calorenta Vip Station era tão entusiasmada que o artista inglês precisava agradar de volta. Chegou a dizer que sabia da turnê nacional há 9 meses e que sua primeira pergunta foi: “quando será o show em São Paulo?”. Emendou: “não digo isso muito, mas acho vocês a melhor plateia de rock no planeta”. Aceitamos o elogio.
Ao introduzir “You Fool No One”, Glenn contou a história de quando a canção foi tocada pelo Deep Purple no festival California Jam, em 1974, e Ritchie Blackmore botou fogo em tudo. Prometeu que não incendiaria nada. Dona de linha de bateria peculiar, a faixa foi executada em uma versão bem estendida. Teve solo de todos os instrumentos (especialmente de bateria, onde Ash Sheehan, por dez minutos, fez um desfile de técnica e carisma com direito a baqueta no nariz e samba tocado com uma mão só), interpolação com “High Ball Shooter” e separação da música principal em duas partes. Deve ter durado uns vinte minutos, mas poderia ter quarenta que ninguém reclamaria.
A história que abre esse texto, sobre a cogitada reunião da formação MK3 do Deep Purple, foi contada antes de “Mistreated”, dramática heavy blues que Hughes admite gostar muito de interpretar ao vivo. Acabou jogando bastante para a galera, não por incapacidade vocal — pelo amor —, mas porque a plateia cantou cada verso e tomou para si o protagonismo. Restava à estrela da noite os agudos. E que agudos. O contexto foi tão emocionante que Glenn, ao fim, admitiu: “vocês vão me fazer chorar”.
Dedicada ao saudoso guitarrista Tommy Bolin, “Gettin’ Tighter” foi uma das duas representantes do álbum “Come Taste the Band”. Acabou recebida de forma tão calorosa que faz pensar se Hughes poderia tocar mais canções do injustiçado disco que encerrou o Purple na década de 1970. Já “You Keep On Moving”, oferecida a Jon Lord, voltou a trazer a plateia como protagonista, a ponto de seu refrão ter sido cantado em uníssono por diversas vezes.
Deep Purple Chili Peppers
Num movimento inusitado, Glenn Hughes e banda deram pausa para o bis mais cedo, após “You Keep On Moving”. A faixa que encerraria o set regular, “Highway Star”, foi transferida para o encore por uma razão justa. Chad Smith, o americano mais brasileiro do momento, subiu ao palco para mais uma canja e tocaria não só o hit da fase MK2 como também “Burn”, que encerrou a noite.
Entre todos os rolês de Smith desde sua chegada ao país — que envolveu tocar com músico de bar no Rio de Janeiro e se apresentar com uma banda cover de Red Hot Chili Peppers em uma casa noturna de São Paulo —, este foi o menos aleatório. Ele é amigo de Hughes há duas décadas e já tocou em cinco álbuns solo do cantor/baixista. Ambos compartilham da paixão por soul e funk music, gêneros pouco notados nas canções heavy metal executadas no fim da noite.
Chad, competente baterista que é, não só as tocou com perfeição como também proporcionou alguns experimentos, especialmente durante os solos. Como de praxe, quebrou o instrumento ao fim. Será que desta vez ele se oferecerá a pagar novamente pelo prejuízo via Instagram?
Um encerramento histórico para noite e turnê emocionantes. Hughes, agora a caminho da Argentina, prometeu que irá retornar ao Brasil em breve. Aguardaremos ansiosamente.
*Fotos de André Tedim em cobertura para o site. Mais imagens ao fim da página.
Glenn Hughes – ao vivo em São Paulo
- Local: Vip Station
- Data: 11 de novembro de 2023
- Turnê: Classic Deep Purple Live – Celebrating the 50th Anniversary of the album Burn
Repertório:
- Stormbringer
- Might Just Take Your Life
- Sail Away
- You Fool No One / Solo de bateria / High Ball Shooter / You Fool No One
- Mistreated
- Gettin’ Tighter
- You Keep On Moving
Bis:
- Highway Star (com Chad Smith)
- Burn (com Chad Smith)
Mais fotos de Glenn Hughes + banda e Chad Smith:
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Quem me fez chorar foi ele, infelizmente não pude ir ao show! Obrigada Igor Miranda pela matéria rica em informações e pelos vídeos!
Igor, Glen Hughes é americano e não inglês
Armando, Glenn Hughes é inglês. Nascido em Cannock, Staffordshire, na Inglaterra. Ele próprio me disse em recente entrevista que nasceu na Inglaterra, embora esteja morando nos Estados Unidos há algum tempo.
Eu não pude ir ao Show, infelizmente, mas lendo o seu texto, eu me transportei e é como se eu estivesse lá. Parabéns pela grandeza de detalhes, pelo conteúdo muito bem escrito. Muito obrigado, virei fã. Abraços