Måneskin prova em São Paulo que seu habitat natural é o palco

Como em 2022, banda italiana mostrou ao Brasil ser mais interessante ao vivo do que em estúdio ao oferecer peso extra a seu hard rock atrevido

Lá pelas tantas do show realizado nesta sexta-feira (3) em São Paulo — o segundo e último da passagem pelo Brasil —, o vocalista Damiano David fez um breve desabafo. O Måneskin estava prestes a tocar “Mammamia”, uma das poucas músicas com letra em italiano a integrar o repertório. Tomado por uma sinceridade rara nesse meio, disse: “Somos muito criticados porque não tocamos músicas em nossa língua materna. Então quer saber? Chupa meu p**, aqui vai uma em italiano”.

Críticas não são novidade para David, Victoria De Angelis (baixo), Thomas Raggi (guitarra) e Ethan Torchio (bateria). Desde seus primeiros movimentos de internacionalização, o grupo precisa lidar com comentários negativos não só de quem não gosta deles, como também de uma fatia de sua base de fãs — aqueles mais saudosistas, por exemplo, que queriam a banda tocando canções em italiano para sempre.

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A reação do quarteto a todas as críticas, não importa de onde elas venham, tem sido justamente essa: “chupa meu…” você sabe o quê. É uma rebeldia controlada, mas ainda é rebeldia. Num momento onde vertentes mais clássicas do rock estão ficando quadradonas — o que tem feito o estilo sair cada vez mais do mainstream —, o Måneskin exala frescor. E isso ajuda a explicar todas as conquistas obtidas até aqui.

Foto: Jeff Marques

Não é uma banda perfeita, há de se combinar. O discurso às vezes chega desalinhado. Gera questionamentos. Uma banda “antissistema” patrocinada pela Gucci? Um grupo que discute igualdade de gênero ao mesmo tempo em que a imagem de sua baixista é fortemente explorada? Um quarteto que, sim, utiliza-se de algumas controvérsias — voluntariamente ou não — para gerar repercussão? Só que nem tudo é perfeito. Quem está esperando todas as lacunas preenchidas em um grupo cujo integrante mais velho (Damiano David) tem 24 anos, certamente, precisa ajustar seus ponteiros.

Dadas as condições, o Måneskin já fez bastante. Quem assistiu à sua apresentação no Espaço Unimed, mesmo local que os recebeu em 2022 — novamente produzida pela Mercury Concerts num golaço da empresa e mais uma vez com ingressos esgotados —, sabe disso e pôde tirar a prova.

Foto: Jeff Marques

Plateia ensurdecedora

O repertório trazido pelo Måneskin ao Brasil segue os moldes do que já vinha sendo apresentado com sua “Rush! World Tour”, giro que promove o álbum “Rush!” (2023). Quem ouve o disco de forma atenta, provavelmente, estranha a banda que sobe ao palco de início. O som é bem mais pesado e redondo ao vivo do que em estúdio, onde o grupo parece ter que se adequar a padrões mais radiofônicos.

O resultado? Gritos ensurdecedores desde o início. Foram raras as vezes que vi um público tão barulhento como o dos italianos. Em “Don’t Wanna Sleep”, a plateia quase engoliu o quarteto; conseguiria se o som fosse menos consistente. Mas a banda não deixa — e disposta a “vencer” essa batalha imaginária, emenda a dançante “Gossip” (gravada originalmente com Tom Morello) e a pesada “Zitti e Buoni”.

A essa altura, há tantas calcinhas e sutiãs sendo atiradas no palco que Damiano David se torna uma filial do saudoso Wando. Ele dá um pequenino intervalo para o primeiro diálogo com o público. Diz que aquele é o último show antes de a banda dar uma pausa e que sentirá falta da energia dos palcos. Quase dramático, já que o grupo retorna aos palcos no próximo dia 20, na Austrália.

Foto: Jeff Marques

A recém-lançada “Honey! (Are You Coming?)” veio na sequência e a reação foi menos calorosa que às três primeiras, mas ainda com bastante intensidade. Por falar em temperatura (ainda que agora de forma literal), a chili-pepperiana “Supermodel” foi introduzida com uma justa menção de David ao calor do Espaço Unimed, cujo sistema de ar condicionado nunca funciona direito: “Esse lugar é quente. Sabe o que mais é quente? Supermodelos”. Lembre-se: são garotos de 22 a 24 anos, não dá para esperar profundidade. Espere apenas diversão.

Foto: Jeff Marques

Enjoados só de falar do hit, não de tocar

A primeira balada do set, “Coraline”, é a melhor canção do Måneskin neste formato. Especialmente por não ser uma power ballad convencional: há uma parte instrumental pesada em seu miolo. Na sequência, recordes de celulares levantados ao som de “Beggin’”, releitura do Four Seasons que consagrou a banda mundialmente. Antes, Damiano David comenta: “estamos enjoados de falar sobre essa música, mas não de tocá-la”. Que bom. Ainda que o grupo não se resume a este cover, seria estupidez renegá-lo.

Sob coros de “Victoria gostosa”, “Damiano gostoso” e “Thomas gostoso” — não deu para distinguir se também gritaram para Ethan —, foi executada “The Driver”, música que será disponibilizada apenas na próxima sexta-feira (10), como parte da versão expandida de “Rush!”. Canção meio confusa, o que talvez justifique sua ausência do álbum principal, mas ainda interessante.

A plateia volta a gritar recados, mas desta vez com um pedido: queriam ouvir “Baby Say”, música ausente em toda a etapa latino-americana da turnê. O grupo até tentou tocá-la, mas Victoria não se recordava da linha de baixo, então, ficou pela metade. Já estava bom. A partir daqui, há duas das melhores canções da noite; não por acaso, duas das mais pesadas: “For Your Love”, com seu groove sensacional e num raro momento onde a iluminação joga a favor, e “Gasoline”, dona de uma abordagem tão intensa que é difícil não se sentir compelido a gritar o refrão em coro.

Refrão este que, vale destacar, é a única coisa pré-gravada do show. Em tempos de exagero nas backing tracks, o Måneskin fez tudo ao vivo. E já que coube menção à iluminação, também é importante pontuar: não há qualquer elemento visual no palco fora luzes e gelo seco. Os italianos não recorrem a belas decorações para entreter seu público. No fim das contas, um bom show de rock and roll não precisa disso. Às vezes é legal, mas não é imprescindível. Mais um sinal de que, desalinhamentos à parte, eles são de verdade.

Foto: Jeff Marques

Exagerados

Uma pausa de aproximadamente cinco minutos se fez necessária para que Damiano David e Thomas Raggi ocupassem o minipalco montado no centro da pista para um breve set acústico. “Vent’anni”, nesta etapa latino-americana da turnê, foi executada exclusivamente no Brasil no lugar de “Timezone”. Boa escolha, já que se trata de uma bela canção — e, veja só, com letra em italiano.

Raggi troca o violão pela guitarra e se prepara para executar a grande surpresa do repertório no país: uma versão para “Exagerado”, sucesso de Cazuza. David explicou:

“Tentamos fazer um cover especial em cada cidade. É sempre muito difícil achar uma música diferente pra aprender e dessa vez foi mais complicado, pois não falo nada de português. Mas aprendi algumas, as mais fáceis: obrigado e… (insira alguns palavrões aqui).”

Não estava tão bem ensaiado entre voz e guitarra, mas valeu a tentativa. Damiano foi modesto: como o idioma italiano não é tão distante do português, sua interpretação da letra ficou bem próxima da original.

A seguir, outros cinco minutos (talvez menos) de intervalo para David e Raggi retornarem ao palco principal. Desta vez, com som: Victoria De Angelis e Ethan Torchio ofereceram um instrumental no baixo e bateria onde ambos desfilam seus talentos. Aliás, é importante reforçar: cada integrante sabe perfeitamente o que está fazendo com seu instrumento. A banda é tecnicamente impecável. Basta seguir a lógica: não fossem tremendamente competentes, não estariam se apresentando por aí em um formato tão “seco”, em trio instrumental. Em quase nenhum momento sente-se falta de teclados, guitarra rítmica ou mesmo backing vocals, já que a voz rasgada e intrigante de Damiano é a única a ocupar algum microfone no palco.

“I Wanna Be Your Slave”, que entrou na sequência, mostrou tudo isso. Estendida em seu miolo, a atrevida e swingada canção ofereceu destaque a todos os membros de alguma forma. Aqui, pede-se que os fãs se abaixem para, ao sinal de Damiano, pularem juntos. Não foram muitos que realmente cederam os joelhos, mas na hora da “volta”… catarse coletiva.

Foto: Jeff Marques

“Tá aqui o seu italiano”

A temática “idioma italiano” foi abordada em duas diferentes situações. Na primeira, de forma mais leve, precedendo “Mammamia”. Damiano David brincou que esta é a única palavra na língua que todos conhecem. A canção ganha peso ao vivo, mas é um dos pontos fracos do set. O empenho do vocalista em seguir empilhando calcinhas e sutiãs em seu pedestal chamou mais atenção do que a faixa em si.

Já a segunda foi justamente o desabafo que abriu este texto. Ocorreu entre “Lividi Sui Gomiti” e “In Nome Del Padre”, duas das cinco canções em italiano que rolaram no show. Durante ambas, chamou atenção os vocais mais “rap”, ainda que em instrumentais de peso — especialmente na segunda mencionada. É uma pena que o mercado internacional (leia-se Estados Unidos) não receba tão bem canções que não sejam em inglês, já que as duas aqui destacadas são ótimas.

Foto: Jeff Marques

Por incrível que pareça, os momentos menos interessantes do show do Måneskin estão no final. “Bla bla bla” é tão sem graça quanto ouvir um blá-blá-blá, enquanto “Kool Kids” só fica interessante porque é quando a banda reúne diversos fãs no palco. Tinha de tudo, inclusive uma moça com os seios de fora, efusivamente abraçada por Victoria De Angelis em determinado momento.

O retorno para o bis se dá com um solo de guitarra bem executado por Thomas Raggi que precede “The Loneliest”, balada adorada pelos fãs, mas que não tem a mesma classe de “Coraline”. Felizmente, o encerramento definitivo ficou a cargo de outra execução de “I Wanna Be Your Slave”, agora em versão estendida e novamente com o “número” de fazer todo mundo abaixar para pular em seguida. Desta vez, mais fãs se abaixaram; já quanto à catarse coletiva, nada mudou.

Måneskin em habitat natural

Será difícil convencer um hater de Måneskin a conferi-los em seu habitat natural: no palco. Especialmente no Rock in Rio 2022, quando engoliram o tedioso show do Guns N’ Roses, foi comum ouvir pessoas admitindo que não gostavam do grupo italiano, mas que acabaram convencidas por sua apresentação ao vivo. Num contexto de festival, é mais fácil “converter” essa fatia do público.

Mas que se danem os haters. Quem chega ao ponto de odiar banda em pleno 2023 talvez nem merecesse atenção. Individual e coletivamente, o grupo funciona. Oferece um hard rock por vezes atrevido e sempre redondíssimo em cima do palco. Acertam até mesmo na escolha do repertório, já que a maior parte das músicas é bem-sucedida em mostrar seus talentos. Em termos de som, que é o que importa, praticamente não há lacunas ou fragilidades.

Foto: Jeff Marques

Pode não parecer às vezes, mas o Måneskin é de verdade. Uma banda fabricada não conseguiria proporcionar uma noite tão boa de rock and roll como a da última sexta-feira (3). Ainda estão na fase de ceder a alguns caprichos da equipe de marketing das empresas interessadas em seu trabalho, mas quase toda grande banda do gênero passou por isso em algum momento. Afinal de contas, é preciso algo além de talento para fazer sucesso numa escala como essa. Mas o principal ainda é o talento; algo que o Måneskin, de fato, tem.

*Fotos de Jeff Marques. Mais imagens ao fim da página.

Foto: Jeff Marques

Måneskin – ao vivo em São Paulo

  • Local: Espaço Unimed
  • Data: 3 de novembro de 2023
  • Turnê: Rush! World Tour

Repertório:

  1. Don’t Wanna Sleep
  2. Gossip
  3. Zitti e Buoni
  4. Honey! (Are You Coming?)
  5. Supermodel
  6. Coraline
  7. Beggin’ (cover do Four Seasons)
  8. The Driver
  9. Baby Said (trecho)
  10. For Your Love 
  11. Gasoline
  12. Vent’anni (acústico, Damiano e Thomas)
  13. Exagerado (cover de Cazuza, Damiano e Thomas)
  14. Solo de baixo e bateria + I Wanna Be You Slave
  15. Mammamia
  16. Lividi Sui Gomiti
  17. In Nome Del Padre
  18. Bla Bla Bla
  19. Kool Kids

Bis:

  1. Solo de guitarra + The Loneliest 
  2. I Wanna Be You Slave
Foto: Jeff Marques
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Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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