Temos que admitir: o histórico não é dos melhores. O Red Hot Chili Peppers nunca foi conhecido como uma grande atração de shows. Por incrível que pareça, a magia principal de uma banda com um nome que remete a potência e ardência acontecia… em estúdio, onde os sentimentos artísticos naturalmente se diluem mais.
Mesmo em sua décima passagem pelo Brasil, o grupo americano que vai do funk ao pop rock num estalar de dedos ainda divide opiniões do público roqueiro em função de sua performance ao vivo. Há relatos de experiências incríveis e terríveis assistindo ao Chili Peppers, especialmente quando tocaram no Rock in Rio — 2001, 2011, 2017 e 2019, as três últimas com Josh Klinghoffer na guitarra.
A grande reclamação gira em torno de como o Red Hot trata seu próprio show. São diversos os relatos de que os integrantes não estão nem aí: tratam seus enormes palcos como uma grande jam. Alega-se que eles não conversam com os presentes, improvisam tanto entre músicas quanto durante elas e não capricham na parte visual, com telões, pirotecnia e jogos de luzes mais arrojados.
Mas desde o retorno de John Frusciante, sacramentado no fim de 2019 numa publicação no Instagram que parecia até fake de tão despretensiosa, a banda completa por Anthony Kiedis (voz), Flea (baixo) e Chad Smith (bateria) parece ter compreendido de vez que precisa oferecer espetáculo. Ao menos até certo ponto.
Quem se dispôs a ir até o estádio do Morumbi — local de complicado acesso independentemente do meio utilizado — em plena sexta-feira se viu diante desse cenário. Assistiu a um grupo que, enfim, parece consegue dosar sua entrega: dá o que todos esperam ao mesmo tempo em que improvisa e não só desafia o público, como a si próprio.
Já começa com improviso
Com apenas seis minutinhos de atraso, a apresentação teve início de um jeito nada bombástico; ao menos em comparação a outros shows de arena. Tocada uma breve vinheta, entram no palco sem qualquer glamour Flea (plantando bananeira), Chad Smith e John Frusciante. Começam, então, a tocar uma jam que se altera todas as noites. Nesta, o guitarrista introduziu uma brincadeira de “liga-desliga” até explorar bastante sua influência de Jimi Hendrix, seja na escolha das notas ou no trabalho com o feedback.
Quando “Can’t Stop” começa a ser desenhada, quase cinco minutos depois, Anthony Kiedis aparece no palco com sua bota ortopédica e seu charme de “o Iggy Pop da geração seguinte”. A partir daqui o público está ganho. Sim, cedo desse jeito. Cantarolaram com “ôôô” o riff de abertura e até os backing vocals de Frusciante antes do refrão. Kiedis se esqueceu de voltar a cantar após o solo, o que enterra qualquer possibilidade de especulação sobre playback.
Numa raríssima interação com a plateia, o cantor largou um “boa noite” em português mesmo antes do início de “The Zephyr Song”. A chicletíssima canção teve seu solo alterado, curiosamente, para melhor. Antes da chatinha — mas adorada pelos fãs — “Snow ((Hey Oh))”, Flea soltou um berro diante do microfone. E só. O diálogo com os presentes é nesse nível. Ainda bem que ninguém liga. A plateia abraçou a canção de forma tão visível que, no telão, foi possível ver Frusciante sorrindo ao fazer seus backing vocals e notar que estava sendo acompanhado por dezenas de milhares de brasileiros.
A partir daqui, quase não há mais falas dos integrantes com os fãs. O espaço entre as canções é ocupado por improvisações. Ao fim de “The Zephyr Song”, por exemplo, rolou a mais ardida delas; quase sem combinar com a música que acabava de ser finalizada. “Here Ever After”, em seguida, foi a primeira obra nova da noite. A faixa de “Unlimited Love”, um dos dois álbuns do Chili Peppers em 2022, tem um groove tão irresistível que fez Anthony dançar loucamente mesmo com a bota ortopédica. Inegavelmente, porém, esfriou o público.
O jeito morno de recepção a outras canções mais “jovens” leva a um questionamento natural: será que dois discos no mesmo ano não foi meio demais? Entre as quatro faixas desses trabalhos reproduzidas na noite (“Here Ever After”, “Eddie”, “Tippa My Tongue” e “Black Summer”), apenas “Black Summer”, a primeira divulgada como single desde a volta de Frusciante, foi recebida com algum entusiasmo. Faltou dar mais tempo para que essas obras fossem melhor trabalhadas.
Que as reflexões fiquem à parte, pois é hora de mais uma jam, esta mais funky e a única a envolver os quatro integrantes — sim, Anthony tentou rascunhar uma letra ali mesmo para acompanhar os colegas. Soou mais legal que o cover de “Havana Affair” (Ramones) tocado na sequência.
Dosando para encerrar lá no alto
O miolo do repertório trouxe o Red Hot Chili Peppers praticando outro tipo de dosagem que se espera: já que vai excluir alguns hits, que ao menos escolha canções funcionais para o lugar. Como já dito, o público não comprou tanto as novas “Eddie” — apesar dos solos incríveis de John Frusciante — e “Tippa My Tongue”, mas as reações foram entusiasmadíssimas para a alucinógena “Parallel Universe” (que, mesmo sob aparente simplicidade, mostra o forte entrosamento do trio instrumental), a bela “Soul to Squeeze” (dona de timbragem que só Frusça consegue reproduzir), a intensa “Right on Time” e a cadenciada “Don’t Forget Me”.
Aconteceu tudo isso aí na parte central do set, com o hit “Tell Me Baby” e a emotiva versão solo de John para “Terrapin” (Syd Barrett) misturados a essas canções “lado B”. Foi esse tipo de equilíbrio que faltou no criticado repertório de Brasília, três dias antes, quando abdicaram de vários hits para, entre outras decisões, emendar B-sides menos celebrados. Por sorte, o problema foi corrigido na capital paulista.
Quando Frusciante pega sua guitarra semiacústica Gretsch branca para improvisar (de novo) com Flea, é sinal de que “Californication” está para chegar. Começa aqui uma nova sequência de hits, como no início. Emendam “Black Summer” — reforçando, a única recebida com mais empolgação entre as novas —, “By the Way”, “Under the Bridge” e “Give It Away”.
São cinco músicas fortes, executadas sem displicência — com direito a maior participação do tecladista de turnês Chris Warren — e separadas apenas por algumas jams, um pedido de Anthony para que desliguem uma luz vermelha (provavelmente de drone) e uma breve saída do palco, com retorno para o bis. Durante o intervalo, os telões mostraram fãs que seguravam todo tipo de item para chamar atenção dos músicos: camisetas dos Lakers (time de basquete para o qual Flea torce inveteradamente), bandeiras do Brasil e da banda, pedidos de folha de setlist e por aí vai.
Impressões ruins apagadas
O encerramento apoteótico serviu para provar que quando o Red Hot Chili Peppers resolve acertar, é em cheio. Se algum dos presentes no Morumbi havia visto um show ruim da banda no passado, certamente se esqueceu.
Fica, sobretudo, a boa impressão passada pelo retorno da formação clássica. Com todo o respeito a Josh Klinghoffer, que fazia bom trabalho em estúdio, mas John Frusciante é peça fundamental. Para uma banda que depende tanto de sua química para funcionar, torna-se imprescindível que seu guitarrista mais célebre esteja presente. É papo de encerrar o grupo se ele resolver sair de novo.
Não que isso reduza os méritos dos demais envolvidos. Anthony Kiedis, aos trancos e barrancos, tem identidade extremamente singular na voz e na interpretação. Além disso, como seus outros colegas, parece se divertir à beça no palco. E recorrendo à primeira pessoa do singular: Flea e Chad Smith, este último o rei dos rolês aleatórios no país, compõem uma das melhores cozinhas que já vi ao vivo. De longe. Conseguem isso sem precisar promover um desfile de técnicas; apenas preenchem o som de um jeito raríssimo.
O Red Hot Chili Peppers ainda se apresenta em Curitiba e Porto Alegre, respectivamente na segunda (13) e quinta-feira (16), antes de concluírem a turnê sul-americana no Chile e Argentina. Todos os ingressos estão esgotados. Emoções pela volta de Frusciante à parte, as pessoas parecem já saber que irão assistir a um bom show.
Red Hot Chili Peppers – ao vivo em São Paulo
- Local: Estádio Cícero Pompeu de Toledo — Morumbi
- Data: 10 de novembro de 2023
- Turnê: 2022-23 Global Stadium Tour
Repertório:
- Intro Jam
- Can’t Stop
- The Zephyr Song
- Snow ((Hey Oh))
- Here Ever After
- Havana Affair (cover de Ramones)
- Eddie
- Parallel Universe
- Soul to Squeeze
- Right on Time
- Tippa My Tongue
- Tell Me Baby
- Terrapin (cover de Syd Barrett; apenas John Frusciante)
- Don’t Forget Me
- Californication
- Black Summer
- By the Way
Bis:
- Under the Bridge
- Give it Away
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