Se a primeira impressão é a que fica, a estreia tardia de Mick Mars nos palcos brasileiros em 2011, ainda como membro do Mötley Crüe, certamente poderia ter sido melhor — pois ele não se recorda.
Contudo, quando sua antiga banda retornou, quatro anos mais tarde, para uma participação improvável no Rock in Rio, o guitarrista pôde sentir a avassaladora loucura dos fãs. “Muita gente [naquela noite]. E eu fiquei tipo, uau!”, diz ele, tentando reproduzir a estupefação que sentiu naquele 19 de setembro de 2015. “A América do Sul é, como posso dizer? Mais barulhenta, mais animada do que americanos ou europeus”.
Esperava-se que aquele ano fosse a despedida, algo em que Mars apostava. No entanto, o show business tem suas próprias necromancias. Ao perceber que havia um legítimo interesse e muitos dispostos a investir no caso de uma nova turnê, o Mötley rasgou o contrato que previa o fim de suas atividades e voltou, coestrelando com o Def Leppard um dos giros mais bem-sucedidos da década.
Em meio a isso, as coisas azedaram nos bastidores. Mick acabou fora da banda que ajudou a formar e à qual pertenceu por mais de 40 dos seus 72 anos de vida.
Mesmo não sendo mais jovem e não desfrutando da mais plena saúde — “meu corpo, com essa A.S. [espondilite anquilosante], está me derrubando”, ele reclama —, não está nos planos dele parar. A prova mais recente desse ímpeto é o tão aguardado álbum solo.
Previsto para 23 de fevereiro do próximo ano, “The Other Side of Mars” faz jus ao título, com Mick adentrando territórios novos e inexplorados, tocando um metal moderno que evoca diversas paisagens. O som é adornado ainda com slide guitars, violinos, violas, teclados e toda sorte de surpresas.
Nesta, até agora, única entrevista para o Brasil no presente ciclo, Mars detalha os bastidores do disco e, logicamente, fala, mesmo que relutantemente, sobre assuntos relacionados ao Mötley. A gravação em vídeo pode ser assistida abaixo (ou clicando aqui), com legendas em português. Já a versão em texto está disponível a seguir.
“Diferentes sons, tons, tudo”
Há tempos se fala em um projeto solo de Mick Mars, mas só agora isso está finalmente se concretizando. “Venho trabalhando nisso, intermitentemente, há 20 anos ou mais”, diz o músico. “Demorou um pouco mais do que eu queria”.
Estar fora do Mötley Crüe contribuiu para o processo, permitindo que o guitarrista se concentrasse nessa empreitada. Ele afirma que a banda era sua prioridade até finalmente ter a chance de “criar algo que não soasse como ela, mas algo um pouco mais meu. Afinal, é um álbum do Mick Mars, não é?”.
A ideia de Mars ao compor e gravar era ser o mais diversos possível; ele diz estar tentando criar algo como uma “jornada” em seu álbum, com “diferentes sons, diferentes tons, diferentes tudo. Não é como se fosse a mesma música repetida várias vezes”.
No press-release oficial do álbum, o guitarrista foi citado como dizendo: “Quando se trata do meu modo de tocar, há o lado Mötley e o lado Mars”, o que deixa espaço para alguma interpretação. Ele não afirma claramente que, em sua ex-banda, se sentiu compelido a compor e tocar de uma certa maneira, nem que havia uma pressão para manter a fórmula. No entanto, dá a entender que o “lado Mars” nada mais é que um reflexo de seus dias no Mötley.
“[Porque] é o meu som. O som que você ouve em todas as músicas do Mötley Crüe sou eu; meus timbres, meu estilo, minha forma de tocar e tal. E [no meu disco] é como se eu basicamente reinventasse parte de mim mesmo, mas ainda é o meu timbre.”
Ao analisar os títulos das músicas de “The Other Side of Mars”, pode-se tender a assumir uma certa natureza autobiográfica, vide “Broken on the Inside”, “Right Side of Wrong” e “Loyal to the Lie”, escolhida como o primeiro single e videoclipe. Ignorando a questão de quanto do que é ouvido é realmente inspirado em eventos reais de sua vida, Mars explica sobre esta última:
“A letra é baseada em seitas, como a de Charles Manson, a Heaven’s Gate e [a Templo dos Povos de] Jim Jones. Tipo, como diabos você pode dar ouvidos a um cara, abrir mão do seu mundo, do seu dinheiro, da sua vida, das suas roupas, disso, daquilo, daquilo outro, e adivinha? Você acaba morto porque foi leal a esse mentiroso. E isso me incomoda. Sempre incomodou. Eu ficava pensando: como pode um cara qualquer dizer o que você deve fazer? Pai? Sim. Mãe? Idem. Mas um estranho? Não, isso não entra na minha cabeça de jeito nenhum.”
A inesperada balada de Mick Mars
Possivelmente nenhuma outra música encapsula tão bem o título “The Other Side of Mars” quanto “Memories”. A razão é bastante clara: ninguém esperaria ouvir uma balada de piano no álbum solo de Mick Mars. “Quando eu lançar o clipe, vai ter muitos olhos marejados”, antecipa ele, que complementa:
“Compus essa música sobre os anos 1940, pós-guerra ou pré-guerra, sei lá. [No clipe que está por vir], os soldados estão todos uniformizados, e um casal se encontra e se apaixona profundamente. ‘Nunca vou te deixar. Nunca vou te deixar’. Então, passa por cenas de dança de salão e brindes com taças de champanhe, e vão se intercalando fotos deles felizes com os filhos em casa e tal. Mas no final, esse velho está segurando a mão da mulher porque ela está prestes a morrer. E ele repete: ‘Nunca vou te deixar’. É isso.”
Paul Taylor, do Winger e ex-Alice Cooper, toca o piano nesta faixa. Mick relata: “Compartilhei com ele minha visão: nada de bateria, nada de guitarras, nada de nada. Como se Freddie Mercury subisse ao palco e apenas se sentasse ao seu piano branco e começasse a cantar e tocar, esse tipo de coisa”.
Colaboradores estrelares e ausência significativa
Colaborador fundamental para o projeto — e, assim como Mick Mars, residente em Nashville —, Paul Taylor tocou no álbum, ajudou o guitarrista a coescrever muitas das faixas e ainda apresentou o guitarrista ao vocalista Jacob Bunton. Outros músicos no lineup incluem o baterista Ray Luzier (Korn), o baixista Chris Collier e o cantor Brion Gamboa, que contribuiu com vocais principais em duas músicas. “Ray mora aqui. E Chris, que trabalhou em muitos álbuns do Korn, entrou, por indicação do Ray, é claro”, ele explica.
O agora aposentado Michael Wagener cuidou da produção e da engenharia de som. O processo aconteceu da seguinte forma, de acordo com o guitarrista: “Michael chegou e fez tudo, e então eu enviei [as gravações] para Chris em Las Vegas para mixar e masterizar, e ele me enviou de volta”.
Um nome que está ausente nos créditos é John Corabi. Havia uma expectativa dos fãs de que o cantor do álbum homônimo do Mötley Crüe de 1994 seria o vocalista no projeto solo de Mars, mas isso não se concretizou. Por mais que a cronologia pareça não coincidir, a justificativa dada começa com “Ele estava ocupado com o Dead Daisies [banda da qual o cantor saiu em 2019 e retornou no início deste ano] e fazendo outras coisas”. Ele completa:
“Eu realmente queria que ele cantasse, John é um bom amigo meu, mas ambos decidimos que não deveríamos repetir aquilo [o álbum de 1994 do Mötley]. Mesmo que ele tenha uma voz incrível. Acho que fizemos a escolha certa em não tê-lo cantando.”
Futuros projetos e apresentações intimistas
“The Other Side of Mars” nem mesmo foi lançado, mas o incansável Mick diz estar trabalhando no próximo álbum. Sem trocadilhos, há outros lados de Mars ainda a serem explorados? Ele antecipa:
“O próximo álbum definitivamente terá algumas coisas mais metal. Mas estou realmente me esforçando para não repetir os anos 1980. Se você ouvir as músicas ‘Killing Breed’ e ‘Undone’ [de ‘The Other Side of Mars’], é exatamente isso. Inclinando-me mais para esse estilo de composição. E isso pode soar um pouco cafona, mas é um processo de crescimento que espero que meus fãs entendam. Mas há que se ter parcimônia. Se eu lançasse as músicas que estou fazendo agora como meu primeiro álbum, acho que perderia alguns fãs. E possivelmente ganharia outros, é claro…”
Além do lançamento do álbum em 23 de fevereiro de 2024, espera-se que Mars reconstrua seu próprio estúdio e continue gravando novas músicas “enquanto as pessoas as estiverem curtindo”. Sem pressa, ele assegura.
“Várias bandas lançam o mesmo disco duas vezes porque estão em turnê e voltam, e o empresário ou a gravadora lhes diz: ‘vocês estão de folga por seis semanas, gravem um álbum’. Esses álbuns [feitos na correria] são os piores. Me recuso a fazer isso. Então, provavelmente, durante todo o próximo ano, estarei trabalhando no meu segundo álbum, como eu disse, para levá-lo para o próximo nível.”
Quanto à possibilidade de subir ao palco para tocar suas músicas ao vivo, Mars está definitivamente aberto, mas não em uma grande turnê. Ele reflete:
“Já estou farto de arenas e lugares enormes. Gostaria que [meus shows solo] fossem mais intimistas. Simplesmente não consigo me ver, vovô, num palco imenso. A única banda que pode fazer isso são os Stones!”
De volta à estrada mais uma vez
Mick Mars nem precisaria dizer com todas as letras que está farto de arenas e multidões. Considerando como as coisas se desenrolaram no Mötley Crüe, desde a Stadium Tour em diante, ele acredita que teria sido melhor para a banda manter a promessa feita aos fãs em 2014 de que não se apresentaria mais após 2015.
“Eu estava crente que aquela tinha sido a turnê final, e havia retomado a escrita [do meu trabalho solo] em 2016. Mas acho que o filme ‘The Dirt’ fez com que muitas pessoas quisessem ver a banda novamente. Foi meio que ressuscitada, com toda a publicidade e tudo o que estava acontecendo. E lá estava eu, de volta à estrada mais uma vez.”
Desde que o autobiográfico “The Dirt” foi lançado na Netflix em 2019, muitos colegas e colaboradores do Mötley questionaram a veracidade de algumas histórias adaptadas do livro homônimo de 2001. Um dos comentários mais recentes sobre o assunto foi do produtor Tom Werman. Mick diz que “talvez algumas histórias tenham sido exageradas [em relação ao que realmente aconteceu]”. “Não quero falar a fundo sobre isso, mas tudo o que eu declarei em meus depoimentos [transcritos no livro] é verdade”.
Em relação ao filme, Mars opina: “Achei muito bom, embora tenham deixado de fora [o que eu considero] algumas das melhores partes”.
Quanto à frequente presença da sua ex-banda nos noticiários, com muitas histórias que não são necessariamente favoráveis a ela, Mick diz que não dá muita bola. Ele também se recusa a comentar as recentes especulações de que Nikki Sixx não gravou muitos dos baixos do Mötley nos álbuns. “Nada a declarar”.
Reflexões pós-Mötley Crüe
Mas uma coisa sobre a qual Mick Mars pode comentar é o que ele considera ser a maior conquista do Mötley Crüe em mais de 40 anos de história. “Estou feliz por nunca termos entrado no Rock and Roll Hall of Fame”, afirma.
“Nem mesmo termos sido considerados para um Grammy. O Mötley Crüe era legal demais para essas coisas; sempre fomos os caras maus, rudes, viciados em drogas, bêbados. Não acho que houve muito respeito [dos demais integrantes comigo]. Mas eu ainda respeito o Mötley Crüe, é claro.”
Apesar do desfecho, ele assegura não ter arrependimentos.
“O Mötley Crüe fez muito pela minha vida, me possibilitou muita coisa. E sou grato pelo que fizemos juntos por esses mais de 40 anos ou o que quer que seja.”
Dá para imaginar uma banda como o Mötley surgindo hoje? Mars espera que sim.
“Mas espero que eles levem a coisa a outro patamar. Eu sempre disse isso sobre bandas mais jovens. Tipo, ‘por que todos os caras dos anos 1980 não saem fora e vão aproveitar, seja lá o que for?’. Para mim, são os jovens que importam agora, porque nós já tivemos nosso quinhão. Deixem espaço para esses caras porque esses caras vão levar a coisa a outro patamar. Você entende? Mas as pessoas ainda querem ver isso [as bandas dos anos 1980]. Mesmo a geração mais jovem fica tipo, ‘Oh!’. E isso me incomoda um pouco.”
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