Ao responder a primeira pergunta desta entrevista — expectativa para retornar ao Brasil quase 7 anos desde a última visita e após viagens canceladas em 2019 e 2022 —, Dave Mustaine resolveu fazer uma breve piada. “Sobre os cancelamentos, é tudo culpa do Kiko”, disse, entre risadas, antes de expressar seu amor pelo país que rendeu ao Megadeth o recém-saído guitarrista Kiko Loureiro. O líder de uma das bandas mais populares do thrash metal está mais leve, mas o som continua pesado.
O retorno de Mustaine, vocalista e guitarrista, e seus colegas ao Brasil ocorre para apresentação única em São Paulo, no Espaço Unimed, agendada para 18 de abril. Ingressos seguem à venda. Está longe de ser o único compromisso na América Latina: o grupo passará quase um mês no continente, com shows no Peru (06/04), Chile (09/04), Paraguai (11/04), Argentina (13, 14 e 16/04), Colômbia (21 e 22/04), México (25 e 27/04) e El Salvador (30/04).
Kiko, infelizmente, não estará com a banda. O guitarrista, também conhecido pelo trabalho de longa data com o Angra, anunciou sua saída, após quase 9 anos, para passar mais tempo com sua família. Porém, o brasileiro escolheu e treinou seu substituto: Teemu Mäntysaari, finlandês que tocava com Wintersun e Smackbound. James LoMenzo (baixo) e Dirk Verbeuren (bateria) completam o time — ao menos a equipe que sobe ao palco, pois ainda há uma gama de profissionais envolvidos incluindo até mesmo compatriotas de Kiko, conforme Dave fez questão de destacar após a brincadeira inicial.
“Foi triste não podermos ir até aí. Amamos o público brasileiro, e não apenas o público do rock brasileiro, mas as pessoas do Brasil em geral. Quando fizemos nossa primeira viagem até aí para o Rock in Rio, fizemos algumas amizades que mantenho desde então. Meu guarda-costas por muito tempo, que levamos ao redor do mundo, é brasileiro. Comecei a treinar jiu-jitsu brasileiro há quase 7 anos e meu treinador, brasileiro e um dos meus melhores amigos, viaja comigo. E, claro, quem coloca a fantasia do Vic (Rattlehead, mascote) nos shows é brasileiro. É algo grande. Amamos os brasileiros.”
A primeira viagem cancelada ao Brasil, para o Rock in Rio 2019 e uma longa turnê por outras cidades junto de Scorpions e Whitesnake, se deu por um diagnóstico de câncer na garganta contra o qual Mustaine lutou bravamente, sem abandonar as sessões de gravação do álbum que se tornaria “The Sick, the Dying… and the Dead!” (2022). Anunciou estar curado no início de 2020, quando retomou os shows — e precisou parar em função da pandemia de covid-19. Na retomada das atividades, confirmou outra apresentação no Rock in Rio 2022, que também não aconteceu.
À época do segundo cancelamento, somente a organização do festival se manifestou, alegando razões fora de seu poder. A banda não se explicou, mas curiosamente uma turnê com o Five Finger Death Punch foi anunciada para o período do evento. Com seu estilo próprio de responder, Mustaine revelou, enfim, por que não veio em 2022:
“Ok, bem, deixa eu te contar o que aconteceu em 2023, e então você me diz se consegue ler nas entrelinhas. Então, no início de 2023, eu demiti meu advogado. Demiti meu agente. Demiti meu gerente de turnê. Saí da gravadora. Saí das editoras. Demitimos nossa empresa de mercadorias. Demitimos nossa empresa de fã-clube. Despedimos vários membros da nossa equipe. Preciso continuar?”
Não precisa, Dave. Aliás, chega de falar de passado. O Megadeth deve ter um ano de muito trabalho e o frontman foi convidado a falar sobre dois de seus novos companheiros. Um deles não é tão “novo” assim: James LoMenzo, baixista entre 2006 e 2010, retornou ao grupo em 2021 após o vazamento de imagens íntimas de David Ellefson. Brasileiros só o viram junto de Mustaine em 2008. O outro é o já mencionado Mäntysaari — e este, sim, acabou de chegar.
Sobre o colega de instrumento, o líder da banda declarou:
“Tenho dito para alguns de nossos amigos mais próximos que sinto o mesmo que Ozzy Osbourne deve ter sentido quando encontrou Randy Rhoads. Teemu é muito bom. E sempre tive ótimos guitarristas, e até gostaria de levar o crédito por esse, mas não posso, Kiko o encontrou. Obrigado, Kiko!”
A respeito de LoMenzo, a afirmação foi um pouco mais extensa — e envolveu citações, diretas ou indiretas, a ex-integrantes:
“Amo James. Tivemos outros dois baixistas que tocaram no Megadeth. Houve um terceiro (nota do editor: provavelmente Matt Kisselstein), mas nunca fizemos nenhum show com ele. Esse é o baixista que estava lá no começo. Então, sempre que alguém disser que houve pessoas cofundadoras (nota do editor: provavelmente David Ellefson)… havia outro baixista no começo, então não há cofundador. Acho que há muita história com mudanças. Não acho que James gostaria que você o visse naquele período. A vida dele está muito melhor agora. A banda está muito melhor. Sabe, sem querer ofender os Drovers, Shawn (baterista entre 2004 e 2014) ou Glen (guitarrista entre 2004 e 2008), porque ambos são ótimos músicos, mas acho que James está tocando melhor agora, ele canta muito bem, e sei que ele toca muito, muito bem com Dirk Verbeuren, e isso é o que um baixista deve fazer. Ele deve tocar com os bateristas.”
A saída de Kiko Loureiro
Inegavelmente, Teemu Mäntysaari é um ótimo guitarrista. Mas não há um fã de Megadeth no Brasil que não tenha lamentado a ausência de Kiko Loureiro. Afinal de contas, seria catártico poder assistir novamente ao guitarrista tocar diante de seus compatriotas — a banda se apresentou no país com seu ex-guitarrista em 2016 e 2017.
Até Dave Mustaine lamenta. O americano disse em várias entrevistas que o ex-integrante do Angra havia se encaixado muito bem na banda — a ponto de ter batido recorde de colaborações autorais em “The Sick, the Dying… and the Dead!”. Porém, não há como não compreender e respeitar a decisão tomada.
“Ainda estou lidando com isso. Fico triste, mas amo o Kiko e sei que ele tinha que fazer a coisa certa pela sua família — que é ficar com eles. Pode não ser por muito tempo, pode ser só por um curto período de tempo. Mas quando se é pequenino — e ele tem dois pequeninos agora —, esses primeiros anos são muito importantes. Se Kiko voltar a eles só daqui cinco ou 10 anos, quando todos eles crescerem, e disser ‘ok, estou aqui’, essas crianças vão dizer: ‘tchau, pai, estou indo para outro lugar’. Isso não é uma coisa boa. Acho que isso é parte do problema de muitos jovens. Não é que eles fizeram alguma coisa: foram as pessoas que deveriam estar em suas vidas que fizeram alguma coisa. As pessoas que deveriam estar lá desistem e vão embora. Não importa quão bom ou ruim o garoto seja, a pessoa que deveria estar lá apenas deveria estar lá.”
Dave, inclusive, garante que sempre sentiu orgulho de Kiko. Porém, o sentimento se tornou ainda mais claro após sua saída.
“E acho tão certo e bom o que Kiko fez. Para mim foi tão agridoce, porque tive orgulho dele. Sempre tive orgulho do Kiko, mas tenho que ter muito orgulho dele. Quando ele se afastou, foi muito doloroso, mas eu sabia que ele seria o melhor pai, o melhor marido e que viveria na minha memória como um ser humano realmente decente e maravilhoso.”
Mudanças para show e transmissão ao vivo
Os shows do Megadeth pela América Latina vão ocorrer cerca de seis meses após a última apresentação, realizada em outubro. Dave Mustaine adianta que podem haver algumas mudanças, seja no repertório ou no aspecto visual da performance. Mas não espere um “circo”.
“Teremos uma produção diferente. Vamos usar um palco diferente, alguns recursos visuais diferentes. Também vão entrar algumas músicas novas ao nosso set. Temos um catálogo gigante, então é difícil deixar todo mundo feliz, mas damos o nosso melhor. Temos alguns clássicos para incluir. E também, vamos adicionar uma ou duas músicas novas. Acho que provavelmente acabaremos tocando talvez duas ou três canções do novo álbum. Provavelmente será apenas isso de surpresas. Seria fantástico se pudéssemos fazer algo como ter um holograma de Vic, pessoas saltando de paraquedas na arena ou algo maluco assim, mas é um show, não é um circo.”
Sabe-se, aliás, que haverá uma “grande surpresa” durante a passagem do Megadeth pela Argentina. A relação dos “hermanos” com a banda thrash é de extrema paixão, a ponto de dois dos três shows anunciados em uma arena para 15 mil pessoas já estarem com ingressos esgotados. Sem compartilhar tantos detalhes, Mustaine antecipou que uma das apresentações será exibida online, ao vivo, por meio de uma livestream.
“Até onde eu sei, iremos transmitir esse show ao vivo para o mundo. Já faz muito tempo também que não tocamos na Argentina. Todos os fãs já ouviram falar sobre como são os fãs sul-americanos. Gostaria que pudéssemos mostrar todo o continente ao mundo. É difícil levar uma tropa junto com você para filmar tudo. Mas quem sabe? Pode acontecer algo realmente especial quando pudermos mostrar a eles um pouco mais do que apenas uma cidade. Mas eu sei que documentaremos bastante essa turnê.”
Ao ser questionado sobre a tal surpresa, anunciada há algum tempo pelas redes sociais (e que não será a participação do ex-integrante Marty Friedman), Dave obviamente manteve o mistério. Não aceitou sequer dar alguma pista.
“Bem, realmente não posso dar pistas. Obviamente tem a ver com músicas. Pode ter a ver com a apresentação. Pode não ter. Pode ter a ver com Vic. Pode não ter. Estamos trabalhando muito para tornar nosso show mais emocionante para todos. Meu objetivo é melhorar constantemente nosso show para os fãs, como você, que parecem pessoas realmente boas e felizes. Pessoas que vão a shows e não querem estar lá são apenas pessoas tristes. Esperamos ajudar essas pessoas a se sentirem melhor. Não sou um daqueles caras que você vem ao meu show se sentindo um m#rda e eu vou fazer você se sentir pior. Não vou te dizer: ‘tudo bem, vamos nos sentir uma m#rda juntos’. Eu vou dizer: ‘vamos lá, vamos olhar para o cara ao seu lado e dizer ‘olá’, olhe para o cara ao seu lado do outro lado e diga ‘olá’, agora vamos fazer um mosh’.”
Ainda com relação a possíveis mudanças de setilst, Mustaine tem dito em entrevistas que a origem mais metal de Teemu Mäntysaari tem possibilitado algumas sequências diferentes e mais pesadas de repertório, como iniciar com “Hangar 18” e logo emendar com “Mechanix”. Ainda que não seja para esta turnê, o frontman revelou que há planos de resgatar uma música que não é tocada ao vivo desde 1991: “Good Mourning / Black Friday”, do álbum “Peace Sells… But Who’s Buying?” (1986).
“Não vou dizer por mim mesmo porque vou ter que manter em um suspense. Mas vou lhe contar o que Dirk disse: Dirk quer tocar ‘Good Mourning / Black Friday’. Feilzmente, pude tocá-la antes, pois sou o compositor dela, mas não conseguimos adicionar músicas assim no passado porque o momento não era ideal, a produção não estava certa, os músicos não estavam certos. Quase a tocamos com Kiko e James. Estávamos nos preparando, mas nunca tocamos. Agora, está na lista de coisas a fazer. Pode não ser nesta turnê, mas vamos fazer algumas grandes mudanças. Estamos pensando em um setlist diferente também, sabe, uma ordem diferente de coisas. Vai ser divertido. É sempre bom misturar as coisas.”
“Uma história de sucesso americana”
Várias histórias de superação marcam a trajetória de Dave Mustaine. Na opinião dele, a linha do tempo que culminou no lançamento de “The Sick, the Dying… and the Dead!”, álbum mais recente do grupo, serve como “uma história de sucesso americana”.
Como já destacado, o frontman enfrentou — e venceu — um câncer durante as gravações, a banda — bem como o planeta — lidou com uma pandemia e mais uma mudança de formação ocorreu em meio ao processo: o escândalo envolvendo David Ellefson foi rapidamente solucionado com a contratação do experiente Steve Di Giorgio (Testament, Death, etc) para registrar o baixo em estúdio. James LoMenzo só pôde se envolver a partir da turnê.
“Eu diria que é uma história de sucesso americana. Por um lado, é ótimo mostrar às pessoas que me admiram por que não há problema em me admirar. Às vezes não é bom conhecer seus heróis. Eles podem te decepcionar. No meu caso, estou sempre tentando ser bom com as pessoas, ajudar as pessoas, cuidar das pessoas ao meu redor, ajudar até estranhos às vezes fazendo algumas coisas.”
A reflexão de Dave se encaminhou para mais alguns exemplos fora do âmbito musical. E conclui com o sentimento que sua banda quer oferecer ao público.
“Quão fácil é, quando você entra em uma loja, manter a porta aberta para alguém sair? Fácil, mas as pessoas fazem isso? Não muito mais. E quando você está dirigindo? Você deixa as pessoas entrarem no trânsito? A maioria das pessoas não. Eles buzinam, eles te ignoram. Apenas pequenas coisas assim. Isso torna o seu dia muito melhor, sabe? E eu acho que esse é o espírito do Megadeth. É tipo: sim, fazemos som pesado, mas quer saber? Estamos nos divertindo com o som pesado.”
Rock in Rio 1991 e próximos planos
Na parte final da entrevista, Dave Mustaine foi levado a um passado bem distante e ao futuro. Primeiro, foi convidado a relembrar sua primeira visita ao Brasil, para se apresentar na segunda edição do Rock in Rio, em 1991. Na ocasião, a banda de thrash metal dividiu palco com Guns N’ Roses, Judas Priest, Queensrÿche, Lobão e Sepultura.
“Tive uma das melhores noites da minha vida, depois do show, com Glenn Tipton, do Judas Priest. Fizemos um show maravilhoso. Os fãs foram fantásticos. E saímos pela cidade depois disso. O povo brasileiro é tão festivo e sabe viver a vida. Há uma diferença entre ir a um país e se divertir e ir a algum lugar e agir como um turista rude. Demos uma volta e pudemos ver coisas muito legais na cidade. Eu amei. Mal podia esperar para voltar.”
Ao ser lembrado que a próxima turnê será a 15ª do Megadeth pelo Brasil, Dave soltou um sonoro “uau”. E emendou:
“Isso é ótimo. Eu gostaria que houvesse ainda mais, mas você sabe, são 40 anos de carreira e se você calcular que fomos a cada dois ou três anos, essa é uma média muito boa.”
De olho no futuro, Mustaine apontou quais os próximos planos do grupo para 2024. Como habitual, um ano de bastante trabalho.
“Vamos para a Europa depois da América do Sul, e então voltamos para os Estados Unidos para uma turnê com uma banda chamada Mudvayne — você provavelmente já ouviu falar deles, uma banda muito popular aqui nos Estados Unidos. Depois, faremos uma segunda etapa nos Estados Unidos e no Canadá. E então tiraremos folga o resto do ano ou iremos ao território do Pacífico Asiático.”
*O Megadeth se apresenta no Espaço Unimed, em São Paulo, no dia 18 de abril. Ingressos seguem à venda. A gravação em áudio desta entrevista será disponibilizada em breve.
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