O principal subgênero do rock atual – no sentido de ser o mais consistentemente bem-sucedido – é o pop punk. Essa realidade existe desde os anos 1990. Quando Kurt Cobain morreu em 1994, muitos achavam que a música seria moldada pelos seus colegas de Seattle, mas na verdade coube a artistas vindos da Califórnia nada a ver com Nirvana. E o carro-chefe era o Green Day.
Não era a banda mais famosa, com a base de fãs mais apaixonada. Sequer tinha o apelo visual desejado pelo mainstream. Mas Billie Joe Armstrong, Mike Dirnt e Tré Cool criavam músicas muito grudentas.
Em uma indústria musical prestes a perder seu maior ícone da década, eles eram os sucessores acidentais da tradição melódica do Nirvana.
Essa é a história de “Dookie”.
O som da baía
Desde o surgimento do punk, existem duas cenas bem distintas nos dois extremos geográficos da Califórnia. Enquanto o sul evoluiu para hardcore, o norte permaneceu mais atrelado aos conceitos ingleses do gênero e muito mais purista em suas noções anti-comerciais. Bandas baseadas na região da baía de San Francisco começaram a ganhar destaque nacionalmente no final da década de 1980, com o sucesso underground do Operation Ivy, formado em 1987.
Naquele ano, dois jovens de 15 anos começaram uma banda chamada Blood Rage – que mudou depois de alguns meses para Sweet Children – em Rodeo, uma cidade localizada ao leste da baía. Seus nomes eram Billie Joe Armstrong e Mike Dirnt. Apesar dessa referência geográfica, nem dá pra considerar o lugar como sendo parte da região. Era uma roça que ambos logo procuraram deixar para trás.
Eles logo se mudaram para Oakland e começaram a fazer parte da cena local, organizada em torno do espaço conhecido como 924 Gilman Street. Inaugurado dia 31 de dezembro de 1986 e financiado em parte por Tim Yohannan, fundador da zine Maximum RockNRoll, o lugar se tornou um santuário para excluídos de todas as idades se refugiarem através da música. As regras eram simples e pichadas na parede para todo mundo ler: nada de racismo, machismo, homofobia, álcool, drogas, brigas ou pular do palco. Billie Joe e Mike tinham uma casa.
Não demorou muito tempo para eles chamarem a atenção de Larry Livermore, dono do selo independente Lookout! Records, que os assinou para um contrato de gravação. Logo antes do lançamento de seu primeiro EP, “1,000 Hours”, eles abandonaram o nome Sweet Children por medo de serem confundidos com outro grupo chamado Sweet Baby.
A banda agora se chamaria Green Day, uma referência a uma gíria da cena para passar o dia fazendo nada a não ser fumar maconha. Nessa época, o baterista ainda era John Kiffmeyer, que ainda fez parte do grupo no álbum de estreia, “39/Smooth” (1990), além dos EPs “Slappy” e “Sweet Children”, antes de sair temporariamente para cursar universidade.
Tré Cool originalmente não era para ser um substituto permanente. O baterista tocava com o The Lookouts e havia se comprometido apenas a quebrar o galho pro Green Day durante sua primeira turnê nacional no final de 1990. Após algumas datas, contudo, ficou evidente para todos os envolvidos que era necessário fazer a mudança permanente.
No livro “Sellout The Major Label Feeding Frenzy That Swept Punk, Emo, and Hardcore (1994–2007)”, Larry Livermore contou para o autor Dan Ozzi:
“Uma vez que Tré entrou para o grupo, era como se alguém tivesse colocado um foguete no rabo deles. Eles definitivamente eram uma banda melhor. Ao longo de 1991, eles estavam fazendo muitas turnês. Muita gente estava empolgada a respeito deles.”
Além disso, segundo Livermore, tinha outro componente que apontava um salto iminente em termos de popularidade:
“Havia muitas garotas na primeira fila dos shows, dançando. Esse não era o caso da maioria das bandas punk, onde 80% do público eram garotos fazendo rodinha. Baseado na minha experiência, eu achei ser um ótimo sinal de que seriam populares. Afinal, metade da humanidade é composta de mulheres.”
O chamado das majors
O Green Day lançou em 1991 seu segundo álbum, “Kerplunk”, e começou a fazer shows pela Europa. Quando o disco vendeu 50 mil cópias nos EUA, gravadoras grandes começaram a fazer ofertas. A esse ponto, as gigantes da indústria musical perceberam o tamanho do mercado do punk mais tradicional – Bad Religion, The Offspring e Pennywise eram muito mais populares do que artistas indie – e o trio do norte da Califórnia parecia uma mina de ouro mal explorada aos olhos deles.
Em entrevista de 2019 à Billboard, o produtor Rob Cavallo falou sobre como foi apresentado ao som do Green Day:
“Eu estava produzindo uma banda chamada The Muffs e eles eram de Orange County, foi a primeira banda que produzi para uma grande gravadora. Eu e um cara chamado David Katznelson, a gente assinou eles, e a banda precisava de advogados. A gente conhecia esses caras, Jeff Saltzman and Elliot Cahn, que eram da Bay Area. Quando a gente estava mixando o disco do Muffs, acho que Jeff Saltzman botou em cima da mesa de mixagem uma noite tipo 1 da manhã uma fita cassete. Tinha ‘Green Day’ escrito. Ele falou, ‘Escuta isso quando tiver a oportunidade’. E eu lembro pensar inicialmente, ‘P#ta que pariu, outra fita’.
E no que estava saindo aquela noite umas 2 da manhã eu falei pra mim mesmo: ‘Sabe, não seja um babaca. Bota a fita pra tocar. Nunca se sabe, pode ser ótimo’. E enquanto dirigia pra casa, eu fui de ser um cara exausto com os olhos quase saindo pelas órbitas para estar no meio da rodovia falando: ‘Meu Deus, eu amo essa banda. P#ta que pariu, isso é f#da! Isso é o meu tipo de música!’. Então eu liguei para ele no dia seguinte e falei: ‘Eu preciso conhecer esses caras, eles são incríveis’.”
O Green Day conheceu Rob Cavallo em meio a várias ofertas de outras gravadoras. Ele havia ganho pontos com a banda antes mesmo de conhecê-los por ter trabalhado com The Muffs, mas ainda tinham um teste para ver se ele era diferenciado: os advogados Cahn e Saltzman haviam informado ao trio que o produtor sabia tocar todas as músicas dos Beatles e eles queriam tirar a prova.
Cavallo foi até a casa onde os integrantes moravam em Oakland, ouviu a banda tocar e após todos os presentes ficarem muito chapados, chegou a hora da prova. O produtor nem titubeou, mostrando até como se faziam linhas descendentes em “Help”.
Ele era o cara certo para o trabalho. Então, assinaram com a Reprise Records, subsidiária da Warner.
Dogmatismo punk contra-ataca
O problema para o Green Day é que a cena responsável por lhes acompanhar até ali não gostou nem um pouco dessa decisão. Eles foram taxados de vendidos, acusados de comprometer a integridade pelo apelo do dinheiro prometido por uma grande gravadora.
Entretanto, Billie Joe Armstrong rebateu essa noção em uma entrevista de setembro de 1994 para a Spin:
“Se tivéssemos permanecido na Lookout!, estaríamos ganhando mais dinheiro do que estamos na Warner Bros, porque esse era o relacionamento que tínhamos com a Lookout!. E ainda temos. Era mais uma questão de distribuição e mudança de ares.”
Em 1993, o Green Day era grande demais para uma gravadora independente. “Kerplunk” vendeu uma quantia considerada absurda para o tamanho da Lookout! e shows em espaços para todas as idades – uma tradição da cena punk – começaram a ficar apertados demais.
Mesmo assim, a cena os rejeitou pelo ato. Logo após o anúncio do trio ter assinado com a Reprise, 924 Gilman Street baixou uma nova regra para ser pichada na parede: “nada de bandas de gravadora major”. Em entrevista ao livro “Sellout The Major Label Feeding Frenzy That Swept Punk, Emo, and Hardcore (1994–2007)”, Jesse Luscious, organizador do local, falou que o grupo foi o motivo:
“Eles era nossos amigos, eles cresceram ali, eles tocavam ali o tempo todo. Mas não queríamos que Gilman se tornasse uma incubadora para majors. Nem f#dendo.”
O Green Day tocou pela última vez em 924 Gilman Street dia 3 de setembro de 1993, sob o pseudônimo Blair Hess. Eles foram sujeitos a brincadeiras de seus fãs sobre se venderem, mas a noite teve um ar mais brincalhão do que venenoso.
Eles não tinham mais casa, mas concordavam com a lógica por trás da decisão. Entretanto, ainda ficaram sentidos pelo tratamento de certas publicações – principalmente a Maximum RockNRoll, que constantemente questionava a integridade deles.
E muitas dessas críticas vinham de pessoas com uma origem social bem mais privilegiada. Jello Biafra, ex-vocalista do Dead Kennedys e lenda da cena punk da Bay Area, falou ao livro “Nobody Likes You Inside the Turbulent Life, Times, and Music of Green Day”, de Marc Spitz, sobre isso:
“Eu não tinha percebido até conversar direito com os caras do Green Day que eles tiveram origens bem menos privilegiadas que a maioria das pessoas na cena punk underground e a maior parte da galera radical. Quando conversei com Mike Dirnt sobre isso, ele meio que estourou comigo um pouco e disse: ‘olha, eu tenho dinheiro e comprei uma casa pra minha mãe, assim ela não precisa mais morar num trailer’.”
Fazendo m#rda
A maneira encontrada pelo Green Day para sobreviver a esse período turbulento foi se dedicar ao processo de composição. Em citação presente no livro “Nobody Likes You Inside the Turbulent Life, Times, and Music of Green Day”, Billie Joe Armstrong fala sobre como a mentalidade da banda mudou desde “Kerplunk”:
“A gente meio que evoluiu. Eu amava ‘Kerplunk’, mas acho ao mesmo tempo que não tivemos tempo para pensar direito sobre ele ou definirmos quem éramos com o disco. Algo aconteceu conosco quando assinamos com uma major. Eu me concentrei bastante em composição. Eu queria fazer algo que definisse quem éramos e tivesse uma declaração por trás, mesmo que fosse uma antideclaração. Todas as bandas que vieram do punk rock meio que falharam numa gravadora maior, então era uma aposta alta.”
Os músicos entraram no Fantasy Studios, em Berkeley, junto com Rob Cavallo logo após o último show em Gilman. À Billboard, o produtor descreveu o processo de gravação como relativamente simples:
“Eles perguntaram para mim: ‘Como a gente vai fazer?’. E eu respondi: ‘Bem, vamos montar tudo pra vocês e capturar um som de bateria bem bom, um som de baixo bem bom e um som de guitarra bem bom, e vamos botar vocês pra tocar ao vivo. Queremos que vocês soem como si mesmos. Aí quando a bateria estiver no ponto, talvez façamos overdubs de baixo e guitarra para soar bem parecido com o que tocaram originalmente. E aí a gente faz os vocais’. E aí o processo foi a gente trabalhando duro, focados de 10 a 12 horas por dia. Sempre tinha diversão e papagaiada rolando, mas na real, a gente se concentrou no trabalho. Nada de babaquice. 98% do tempo era: ‘Estamos gravando um álbum. Estamos aqui para chegar todo dia e quebrar tudo’.”
A inovação real envolvida no processo de “Dookie” tomou forma nas canções. O Green Day começou a explorar mais possibilidades artísticas, principalmente aquelas vistas como não underground suficientes aos olhos da cena punk. Billie Joe manifestou seu amor pelos Beatles em canções como “She” e experimentou com ritmos diferentes em “Longview”.
Nessa faixa, Tré toca uma batida reminiscente ao jazz enquanto Billie canta sobre o marasmo de morar na roça em Rodeo. Curiosamente, o pai de Armstrong era um baterista desse estilo de música antes de morrer quando o vocalista do Green Day tinha apenas 10 anos de idade.
A linha de baixo criada por Mike Dirnt para a canção é curiosa não somente por seu caráter singular. Em entrevista de 1995 para a Rolling Stone, o baixista revelou que a compôs enquanto sob efeito de LSD:
“Quando Billieme deu uma batida shuffle para ‘Longview’, eu estava voando bonito de ácido. Eu estava apoiado na parede com meu baixo no colo. Veio pra mim do nada. Eu disse: ‘Bill, saca isso. Não é a coisa mais doida que você já ouviu?’. Depois demorou um tempão para ser capaz de tocar, mas fez sentido enquanto eu estava chapado.”
“Longview” foi o primeiro single lançado de “Dookie”. Sseu sucesso em rádios e na MTV ajudou a alavancar a banda para o mainstream, com a ajuda dos maiores árbitros de gosto da época: Beavis e Butt-head.
A segunda música de trabalho, “Basket Case”, via Billie Joe lidando com questões ligadas não só à sua ansiedade, mas também confusão com relação a sexualidade. Na terceira estrofe da canção, Armstrong canta sobre procurar um prostituto, algo inesperado de escutar nos anos 1990 pós-HIV, especialmente vindo de uma banda punk. Ele elaborou sobre o tópico em entrevista de 2014 à Rolling Stone:
“Eu queria desafiar a mim e quem fosse o ouvinte. Também estava olhando para o mundo e falando: ‘não é tão preto e branco quanto você pensa, não é o profissional do sexo que seu avô conhecia – ou talvez seja’. Esse disco aborda muito bissexualidade.”
M#rda bate no ventilador
No final das contas, “Dookie” só precisou ser mixado duas vezes antes que banda, produtor e gravadora estivessem satisfeitos com o resultado. O álbum saiu dia 1º de fevereiro de 1994. Vendeu 9 mil cópias durante a primeira semana, mas avançou cada vez mais com o tempo.
O sucesso de “Longview” carregou a banda o primeiro semestre inteiro, a ponto que quando se apresentaram no festival Woodstock 94, em agosto, estavam vendendo quase 100 mil cópias por semana. Kurt Cobain havia morrido quatro meses antes e o público alternativo havia elegido o Green Day como sucessor.
Bem, nem todo mundo. A reação negativa iniciada quando a banda assinou com a Reprise ganhou cada vez mais força no underground. A Maximum RockNRoll dedicou sua edição de junho de 1994 a uma denúncia vitriólica contra o saque de bandas punk pelo mainstream. O Green Day foi taxado de traidor do underground pela zine.
Isso aliado com o fato de “Dookie” ter atingido o 2º lugar da Billboard 200 trouxe à tona um debate francamente estúpido sobre arte versus comércio. O Green Day fez o álbum que quis fazer, sem qualquer interferência da gravadora. Vendeu tanto que, em 1999, recebeu um disco de diamante por suas 10 milhões de cópias somente nos Estados Unidos.
Desde então, o Green Day se estabeleceu como uma das bandas mais importantes dos últimos 40 anos. Eles entraram para o Rock and Roll Hall of Fame em 2015 e continuam na ativa. Diversas gerações de jovens cresceram influenciados pela música deles, estabelecendo incontáveis cenas underground próprias.
E o ciclo punk se perpetuou.
Green Day — “Dookie”
- Lançado em 1º de fevereiro de 1994 pela Reprise Records
- Produzido por Rob Cavallo e Green Day
Faixas:
- Burnout
- Having a Blast
- Chump
- Longview
- Welcome to Paradise
- Pulling Teeth
- Basket Case
- She
- Sassafras Roots
- When I Come Around
- Coming Clean
- Emenius Sleepus
- In the End
- F.O.D. (com a faixa escondida All By Myself a partir de 4min09seg)
Músicos:
- Billie Joe Armstrong (voz, guitarra)
- Mike Dirnt (baixo, backing vocals)
- Tré Cool (bateria; guitarra e voz em “All By Myself”)
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