Recém-saídos da dissolução de seu grupo Wicked Lester, Gene Simmons e Paul Stanley idealizaram uma banda diferente de qualquer outra que tivesse existido antes. Essa banda não apenas tocaria um rock ‘n’ roll ensurdecedor e esmagador, capaz de deixar seus pares no chinelo — “uma versão turbinada dos Beatles”, nas palavras de Gene na autobiografia “Por Trás da Maquiagem” (Belas Letras, 2021) —, mas também apresentaria um show fenomenal, que ficaria para sempre na memória do público.
Após as chegadas do baterista Peter Criss e do guitarrista Ace Frehley, nasceu o Kiss.
Foram necessárias algumas experimentações e muitas tentativas e erros musicais, mas a banda finalmente chegou ao som forte que correspondia igualmente à determinação e visão de longo prazo de seus fundadores; desaguando no álbum de estreia lançado há 50 anos, cuja história você lerá a seguir.
O início conflituoso de Gene Simmons e Paul Stanley
O ano era 1969. Tanto o baixista e vocalista Gene Simmons (na época conhecido como Gene Klein) quanto o guitarrista e vocalista Paul Stanley (na época conhecido como Stanley Eisen) estavam tocando em diversas bandas da cena underground do estado de Nova York. Enquanto Gene integrava um grupo do Condado de Sullivan chamado Bullfrog Bheer, Paul estava no Queens, com o Tree.
A poucos dias de uma apresentação do Bullfrog Bheer, o guitarrista da banda pediu as contas. Gene foi até a cidade de Nova York pedir ao seu amigo guitarrista Steve Coronel para quebrar esse galho. Enquanto estava na casa de Steve, Paul, companheiro de Steve no Tree, apareceu.
Steve apresentou Paul a Gene como um amigo seu que compunha músicas. A resposta de Gene foi simples: “Ah é? Toca uma então”. Paul pegou um violão e executou uma canção que havia escrito chamada “Sunday Driver”, mais tarde incluída no primeiro álbum do Kiss como “Let Me Know”. Gene comenta:
“Eu gostaria de dizer que Paul e eu nos entendemos instantaneamente, que um lampejo de inspiração nos atingiu, contendo as sementes do que viria a ser o império Kiss. Mas a verdade é que, quando nos conhecemos, Paul não gostou de mim. Achou que eu era rude. Creio que foi porque, após apertarmos as mãos, olhei no rosto dele e disse: ‘Ah, você compõe músicas? Vamos ouvir então’. Eu certamente não queria causar um confronto, mas foi a impressão que ele teve. Ele ficou com uma expressão que dizia: ‘Quem esse cara pensa que é?’.”
Em “Uma Vida Sem Máscaras” (Belas Letras, 2015), Paul definiu que o colega “pareceu estarrecido com o fato de alguém além de John Lennon, Paul McCartney e Gene Klein ser capaz de compor uma música”.
“Foi um momento de descoberta para ele: lá estava outro cara que não era famoso e sabia compor. Deu pra ver que foi pego de surpresa. Ele murmurou ‘Hmmmm’. Fiquei irritado por ele achar que atuava em um nível que permitia que me julgasse, como se tudo o que importava fosse sua aprovação. Pareceu arrogante, condescendente e ridículo. Ele deixou claro que estava julgando de cima para baixo e não gostei nada daquilo.”
Por mais que Gene tenha ficado impressionado com a habilidade de Paul, saiu faísca entre os dois músicos. Após esse encontro, cada um seguiu seu próprio caminho. No entanto, alguns meses depois, esses caminhos se cruzariam novamente.
Harmonias e descobertas
O Forlini’s Third Phase era uma cafeteria e ponto de encontro universitário na esquina da Rua 110 com a Broadway em Manhattan. A programação musical de uma noite incluía uma apresentação acústica de Gene Simmons e uma elétrica do Tree.
Após seus 15 minutos no palco, Gene foi para a plateia para assistir à performance do Tree. Novamente, ficou impressionado com a voz de Paul e suas habilidades na guitarra base, mas não lhe dirigiu a palavra naquela noite.
Algum tempo depois, Paul respondeu a um anúncio na revista alternativa semanal The Village Voice de uma banda que procurava um guitarrista. Sua surpresa foi grande quando, ao chegar ao ensaio-teste, deparou-se com Gene.
Nem um nem outro estavam particularmente entusiasmados com a perspectiva de estar em uma banda juntos, mas assim que começaram a tocar, sua relação tomou um novo significado. Ao trabalhar com Gene, Paul percebeu que ambos tinham algumas coisas em comum.
“Ele vinha de uma família de sobreviventes do Holocausto. Era sério e inteligente (…) Ele tinha muito a oferecer. Cantava e tocava baixo bem. Sabia compor. E, talvez o mais importante de tudo, Gene tinha foco.”
Simmons, por sua vez, logo aprendeu que Stanley não era tão diferente dele.
“Paul sempre foi o tipo de pessoa que, apesar de ser muito inteligente, tem que ter paixão pelo que faz, senão acaba não fazendo (…) E ele amava rock and roll.”
Embora, inicialmente, Paul não tenha ficado muito impressionado com as canções de Gene — “Ele tinha uma chamada ‘Stanley the Parrot’ [‘Stanley, o Papagaio’] e outra chamada ‘My Uncle Is a Raft’ [‘Meu Tio é uma Balsa’]” —, conforme os dois foram se entrosando, começaram a compor juntos com ótimos resultados.
No início de 1971, Gene, Paul, Steve Coronel na guitarra solo, o tecladista Brooke Ostrander e o baterista Tony Zarella se apresentaram sob o nome de Rainbow em uma faculdade comunitária em Staten Island. Em abril, depois de alugarem um loft em Manhattan por 40 dólares por mês, a banda fez outro show, em Catskills, cerca de duas horas ao norte de Nova York. Dessa vez, com outro nome: Wicked Lester.
Dos pesadelos ao reconhecimento
O Wicked Lester não teve muita sorte em conseguir chamar a atenção das pessoas. “Nossos primeiros shows foram pesadelos: sem plateia, sem dinheiro”, recorda-se Gene Simmons. Mas isso não impedia a banda de dar o máximo de si em cada apresentação, independentemente de quantas testemunhas estivessem presentes.
Em determinado ponto, uma dessas testemunhas foi o produtor Ron Johnsen, que trabalhava no Electric Lady Studios em Manhattan. Johnsen ficou tão impressionado com o que viu que convidou a banda para ir ao estúdio gravar algumas demos, por sua conta.
Gene rememora que Ron gostava das músicas.
“Gostava da nossa aparência. Acreditava em nós. Mas não tínhamos ideia de como gravar um disco. Não sabíamos nada (…) Mas, de alguma forma, conseguimos (…) Paul e eu não saíamos do Electric Lady. Durante a gravação, queríamos observar o trabalho do engenheiro de som e absorver o máximo possível daquela cena.”
A fita demo acabou caindo nas mãos de um executivo da Epic Records, que sentiu algo diferente na banda e pediu para vê-la tocar ao vivo. Depois de se apresentar nos estúdios da gravadora, foi dito ao grupo que poderiam assinar um contrato de gravação, desde que se livrassem de Steve Coronel. A tarefa de dispensar o guitarrista ficou com Simmons.
“Era meu amigo de infância (…) Ele mal pôde acreditar. Sentiu-se traído. Queria saber como eu podia fazer aquilo com ele, como eu podia deixá-lo ser tratado assim. Foi difícil de explicar, mas consegui. Foi uma das primeiras lições na cruel divisão do pessoal e do profissional no negócio da música.”
Gene e Steve continuaram amigos depois disso, mas não era mais a mesma coisa. Duas músicas que eles compuseram, “Goin’ Blind” e “She”, apareceram nos discos “Hotter Than Hell” (1974) e “Dressed to Kill” (1975) do Kiss, respectivamente, pelos quais Coronel recebeu bons pagamentos de royalties ao longo dos anos.
Preso em 2014 após ser acusado de promover pornografia infantil e condenado a seis anos de prisão em 2016, desde 2019 o guitarrista cumpre a pena em regime semiaberto.
Gene e Paul forjam o caminho do Kiss
Em meados de 1972, o Wicked Lester concluiu a gravação de seu álbum. Paul Stanley aponta que algumas canções próprias foram gravadas, mas muito material trazido por Ron Johnsen também foi registrado. “Basicamente, fizemos o que nos mandaram fazer e o resultado foi péssimo”.
Os meses se arrastaram enquanto vários guitarristas entraram e saíram do Wicked Lester. Nesse ínterim, Gene e Paul continuaram a escrever músicas; só que esse novo material tinha uma pegada mais pesada. Ficou claro para os dois que músicas como “Strutter” — cujos acordes vinham da antiga canção “Stanley the Parrot”, de Gene —, “Deuce”, “Firehouse” e “Black Diamond” não eram apropriadas para o Wicked Lester, e que, se fossem tocar esse estilo de música, o fariam com outra banda. Simmons destaca que os gostos não mudaram: “é que no Wicked Lester não tinha guitarra o suficiente”.
Stanley comenta que conversou com Simmons sobre o rumo que desejavam tomar.
“Logo ficou claro que desejávamos criar um novo monstro, algo com coesão sonora e visual. Em muitos sentidos, o que queríamos era a antítese do Wicked Lester, uma banda musicalmente muito dispersa. Queríamos delimitar as coisas. E o visual do Wicked Lester parecia o de um grupo de caras aleatórios que se encontraram por acaso no mesmo ponto de ônibus.”
Inicialmente, a ideia da dupla era demitir Brooke e Tony e reformular o Wicked Lester à sua imagem. Mas, quando anunciaram isso para os colegas, eles não ficaram felizes. “Nosso baterista, em especial, disse que não sairia da banda e honraria o contrato [com a Epic Records]”, rememora Gene. “Então Paul e eu não tivemos outra escolha: saímos da banda”.
Os dois futuros integrantes do Kiss odiaram o álbum. Stanley diz:
“Sentamos juntos só nós dois e decidimos que não queríamos lançá-lo. Na verdade, nem queríamos mais tocar naquela banda. Não estava dando certo, conforme esperávamos. Então decidimos descartar o disco e romper com os outros caras.”
Sem banda e sem gravadora, Gene e Paul realizaram testes para encontrar um baterista e um guitarrista solo para a sua banda dos sonhos.
A chegada de Peter Criss
Encontrar um baterista adequado se mostrou difícil até que Gene Simmons viu um anúncio nos classificados da revista Rolling Stone que dizia “Baterista com 11 anos de experiência, disposto a fazer qualquer coisa”.
O baixista ligou para o sujeito, que atendeu, apesar de estar no meio de uma festa.
“Me apresentei e disse que estávamos começando uma banda e procurando um baterista, e perguntei se ele estava disposto a fazer qualquer coisa pelo sucesso. Ele disse que sim, imediatamente.”
Gene e o baterista conversaram por um bom tempo e, durante o paop, os dois combinaram um encontro em frente ao Electric Lady. Com uma jaqueta de veludo preta e dourada, uma calça de cetim dourado, uma camisa bufante verde-esmeralda e sapatos de camurça verde e vinho comprados na Espanha, o baterista pegou o metrô até o estúdio. No que dependesse de Paul, ele teria sido contratado na hora; sua aparência o impressionou demais.
O baterista sugeriu que Gene e Paul fossem vê-lo tocar naquele fim de semana em um pequeno clube italiano no Brooklyn chamado King’s Lounge. O público era pequeno, cerca de vinte pessoas, mas ele tocava como se estivesse em uma arena lotada.
Além de exalar confiança, o músico se vestia melhor que qualquer pessoa no recinto. Segundo Gene, “ele tinha um corte de cabelo desajeitado, que parecia o Rod Stewart em um bom dia, e usava um cachecol cinza grande. Parecia uma estrela”.
Depois daquela noite, Gene e Paul souberam que haviam encontrado o cara certo em Peter Crisscoula, que mais tarde mudaria seu nome para Peter Criss.
Na autobiografia “Makeup to Breakup” (Lafonte, 2013), Criss evoca:
“A princípio, gostei de Gene e Paul. Eram muito mais profissionais do que qualquer outro músico com quem havia trabalhado (…) Eram absolutamente transparentes a respeito de para onde estavam indo e de como chegariam lá. Senti que, finalmente, tinha encontrado minhas almas gêmeas, que viajariam comigo na estrada para a fama e o estrelato.”
Ace Frehley fecha o quarteto
No entanto, a banda ainda não estava completa. Era necessário encontrar um guitarrista solo, então Gene Simmons e Paul Stanley colocaram um anúncio no The Village Voice: “Procura-se guitarrista com colhões e dedos velozes”.
Enquanto Peter Criss tinha se encaixado perfeitamente como baterista, a busca pelo guitarrista solo foi bem mais problemática: mais de trinta candidatos apareceram no local de ensaio no dia marcado em dezembro de 1972. Segundo Gene, “um perdedor atrás do outro. Mesmo os vencedores eram perdedores”.
Depois do que Paul definiu como “um longo e bastante infrutífero show de horrores”, um cara de ar meio pateta entrou na sala com um tênis vermelho e outro laranja. O protocolo determina que as pessoas façam silêncio enquanto aguardam sua vez, mas como o candidato à sua frente estava terminando — a saber, Bob Kulick, que se associaria ao Kiss de várias formas diferentes ao longo dos anos —, ele ligou sua guitarra no amplificador e começou a tocar.
Decididos a dar uma chance ao fura-fila, Gene, Paul e Peter tocaram “Deuce” para ele duas vezes e, na terceira, ele se arrumou para tocar seu solo, tentando impressioná-los com cada lick arrojado que tinha no seu repertório. “Ficamos aturdidos”, recorda-se Peter. “O sujeito era muito bom. Era fantástico”. Paul acrescenta: “Fiquei absolutamente perplexo. É isso. Isso é letal. Isso é coisa da boa”.
Era Ace Frehley, que, na autobiografia “Não Me Arrependo” (Belas Letras, 2020), relembra:
“Deixei a audição me sentindo confiante de que conseguiria a vaga. Eles ainda estavam testando mais algumas pessoas, mas eu tinha a sensação de que as coisas dariam certo para mim. E eu estava empolgado com isso. As músicas que tocamos eram cativantes, e Paul, Gene e Peter eram músicos sólidos. É verdade que mal conhecia esses caras, mas percebi que eles eram sérios. Em todos os anos que eu havia tocado música, nunca estive numa banda em que todos pareciam não apenas comprometidos com a causa, mas que também tivessem a habilidade necessária.”
E assim, o quarteto estava formado.
Música, imagem e identidade
Se a intenção de Gene e Paul era mudar a banda — contratar novos músicos, compor novas músicas —, provavelmente deveriam adotar um novo nome.
Nomes foram trocados durante várias semanas; “com a maioria sendo descartada em questão de minutos”, aponta Ace. Como Peter já havia tocado numa banda chamada Lips, por fim, Paul sugeriu Kiss. “Graças a Deus, todos os membros votaram a favor do nome quando o sugeri”, recorda-se ele.
“Eu havia me preparado para brigar por ele, pois tinha certeza de que o próximo passo para progredirmos era arranjar um nome clássico e atemporal. A meu ver, era um nome com múltiplos sentidos: além de beijos apaixonados, há também o beijo da morte. Era fácil reconhecê-lo.”
Fazia sentido, segundo Gene.
“É fácil analisar a situação em retrospecto, claro, e as pessoas já apontaram todos os benefícios do nome: ele resumia alguns aspectos do glam rock na época; era perfeito para marketing internacional, porque é uma palavra simples e fácil de entender, em qualquer lugar do mundo. Mas gostamos do nome, e foi só isso.”
A propósito de glam rock, o início dos anos 1970 viu em Nova York o surgimento de bandas do gênero como o New York Dolls, o The Planets e o The Harlots of 42nd Street, e o visual andrógino desses grupos, que usavam casacos de pele, cabelos armados e aplicavam todo tipo de maquiagem em seus rostos, influenciou a aparência inicial do Kiss. “Era espetacular”, reconhece Paul:
“Eles eram os reis da cena de Nova York e eram a referência para a maioria das bandas que estavam surgindo na cidade (…) Tinham cinturas da grossura dos meus pulsos. A comparar com eles, Gene e eu parecíamos jogadores de futebol americano.”
Não tardou até o Kiss se dar conta de que, para se destacar na cena nova-iorquina, seria necessário ter também uma imagem única. Stanley admite que não havia como bater os Dolls em um jogo com as regras deles.
“Decidimos abandonar todas as roupas coloridas e nos recriarmos através de um visual sinistro e totalmente preto (…) Então fomos a uma pet shop e compramos coleiras de cachorro para nós (…) Acabamos encontrando nossas primeiras pulseiras e colares com rebites em um sex shop, no West Village.”
A peça final do quebra-cabeça veio na forma da pintura de guerra. Deixando de lado blush e sombra, o Kiss optou por algo mais chocante. Com camadas pesadas de base branca como a usada por palhaços e artistas de circo e generosas quantidades de tinta facial preta e prateada, cada membro criou um alter ego reflexo de sua personalidade: Gene Simmons tornou-se o “Demon”; Paul Stanley tornou-se o “Starchild”; Peter Criss tornou-se o “Catman”; Ace Frehley tornou-se o “Spaceman”.
Paul explica que todas as imagens expandiam ou reforçavam características dos membros e “por isso não eram meras fantasias”.
“Eram demonstrações externas de coisas que tínhamos dentro de nós. Fazia sentido. De alguma maneira, todos possibilitamos que os outros encontrassem essas ‘personas’ (…) A maquiagem permitia que incorporássemos todas as qualidades das bandas que eu idolatrava. Ela apresentava um visual coeso e uma ideia de união, oferecendo ao mesmo tempo a oportunidade de termos personalidades distintas.”
Agora tudo estava no lugar: o Kiss finalmente tinha a música e a imagem. Mas para alcançar o reconhecimento global que desejavam, o grupo precisava de um empresário e de uma gravadora.
A parceria com Bill Aucoin e Sean Delaney
Quando Bill Aucoin, ex-diretor e produtor dos programas de TV Flipside — um precursor da MTV — e Supermarket Sweep, viu o Kiss botar o Hotel Diplomat abaixo em agosto de 1973, ele soube que a banda tinha uma energia que o mundo precisava conhecer. “Estávamos prontos para o sucesso; só precisávamos de mais um pouco de sorte”, escreve Gene em sua autobiografia.
“O Diplomat estava cheio de executivos e produtores de gravadoras, todo mundo, incluindo Bill Aucoin (…) Quando ele chegou, viu uma multidão feroz de mil pessoas, incluindo as garotas na frente, e a banda tocando às 21h30 em ponto, com maquiagem, colocando as línguas para fora. Você pode imaginar o efeito.”
Embora tivesse um histórico de sucesso na televisão, Aucoin não tinha experiência em gerenciamento, mas ficou tão impressionado com o som e o show da banda naquela noite que decidiu respirar novos ares na carreira. Bill ofereceu-lhes um adiantamento em dinheiro e prometeu garantir um contrato de gravação dentro de três semanas em troca da oportunidade de representar o Kiss como empresário.
Duas semanas depois, ele cumpriu a promessa e o Kiss assinou com a nova gravadora de Neil Bogart, ex-magnata da Buddha Records, chamada Emerald City Records; mais tarde renomeada para Casablanca, em referência ao longa-metragem homônimo de 1942 estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Foi Bill quem se provou o visionário decisivo, segundo Paul.
“Depois que já tínhamos garantido o contrato com a Casablanca, Bill logo desvelou algumas de suas ideias para a banda. A primeira coisa que fez foi nos apresentar ao namorado dele, Sean Delaney, que se devotou a dar corpo para o conceito do Kiss e nos ajudar a ser tão bons quanto fosse possível.”
Durante um ensaio, Sean percebeu que o Kiss havia balançado em uníssono por um instante. Ele encontrou aquele momento em uma fita e mostrou para os músicos, recorda-se Paul.
“‘Estão vendo que vocês se mexeram juntos?’, perguntou ele. ‘Isso deveria se tornar parte do show. É algo que vocês deveriam fazer. Um movimento que seja associado a vocês’. No início, suspeito que todos achamos que aquilo seria meio banal. Teríamos uma coreografia? Mas decidimos dar uma chance à ideia de Sean, e Gene, Ace e eu ficamos próximos um do outro na frente do palco, mexendo as guitarras e balançando. Não deu outra: quando fizemos aquilo na frente do público, as pessoas enlouqueceram (…) Não sabíamos que precisávamos de Sean até termos Sean. Ele realmente elevou a teatralidade de nosso número.”
Num outro dia, Bill chamou a banda em seu escritório e a apresentou a um mágico cuspidor de fogo. “Qual de vocês quer fazer isso no palco?”, quis saber o empresário. Gene concordou em tentar e o resto é história. Em “Por Trás da Maquiagem”, ele resume:
“Sem Bill e Sean, éramos uma banda animada, com entusiasmo suficiente para nos carregar por um tempo. Com eles, viraríamos astros.”
A energia do palco no estúdio
O Kiss deu início às gravações de seu primeiro álbum em 10 de outubro de 1973, nos estúdios Bell Sound, na Rua 54 em Manhattan. Apesar dos pedidos para que Eddie Kramer, que havia produzido sua primeira demo sete meses antes, fosse o produtor, a tarefa coube à dupla Kenny Kerner e Richie Wise. “Neil tinha problemas com Eddie”, revela Paul.
“Eddie havia trabalhado em um álbum da banda Stories na Buddha Records, que não havia deslanchado nenhum hit e talvez tivesse custado mais do que Neil esperava. Então, ele nos apresentou a Richie e Kenny, que tinham ido para o estúdio com o Stories depois de Eddie e gravado seu grande hit, ‘Brother Louie’.”
As sessões duraram apenas três semanas, principalmente porque a banda vinha praticando as músicas todas as noites na maior parte dos últimos seis meses e sabia exatamente como tocá-las. O trabalho no estúdio aconteceu “rapidamente”, recorda-se Gene.
“A base rítmica foi gravada primeiro e depois adicionamos os vocais. As músicas que levamos àquela sessão incluíam material do Wicked Lester que foi remanejado e algumas composições novas.”
Paul acrescenta:
“Éramos totalmente inexperientes, mas tínhamos produtores que nos orientavam e diziam o que fazer. Gravamos rápido, todos na mesma sala, quase sem nenhum overdub.”
“Pus todo meu corpo e alma em tudo que toquei naquelas sessões”, relembra Peter.
“Quando terminei de executar a trilha da bateria, fui embora; minha parte estava feita, a menos que tivesse de cantar uma canção ou criar harmonias. No entanto, quando voltei para a sessão de audição, fiquei atônito. O trabalho de Kerner e Wise era captar a energia do show ao vivo no vinil, mas ela não estava ali. Faltavam colhões. Achei que não era realista esperar algo diferente, pois Kerner e Wise eram muito da velha guarda. Estavam nos fazendo soar como uma banda pop. Odiei a mixagem da bateria.”
Stanley concorda que a bateria não tinha a mesma potência dos discos de várias bandas que escutava na época e atribui isso principalmente à maneira como o engenheiro de som Warren Dewey captou.
“Os engenheiros de som de antigamente não deixavam o som estourar. Achavam que isso era errado: distorção ou sobreposição de sons eram indesejáveis. O engenheiro de som de Kenny e Richie era adepto dessa escola, e isso prejudicou as gravações. Eu queria que tivéssemos alguém que estivesse por dentro do que era feito no mundo contemporâneo do gênero em que trabalhávamos. Mas não tínhamos, então o disco ficou um pouco ‘murcho’. As guitarras saíram um pouco estridentes; as linhas de baixo do Gene se perderam; os vocais pareciam se esconder no ambiente; a sonoridade geral parecia ter pouco fôlego.”
Para Peter Criss, Kenny e Richie tinham canções incríveis e as fizeram soar de modo trivial. “A potência, a energia e a força de nossa banda fora embotada”, escreve ele.
Embora Ace Frehley saia em defesa da equipe técnica — “não dava para argumentar que eles eram os caras errados para o trabalho ou que não eram qualificados e acho que entenderam exatamente o que o Kiss estava tentando realizar com seu primeiro álbum” —, o guitarrista confessa que “adoraria refazer algumas dessas músicas usando equipamentos de última geração.”
Concurso polêmico, lançamento controverso
Lançado em 21 de fevereiro de 1974, o álbum homônimo do Kiss enfrentou enormes críticas. Uns não souberam o que pensar da capa horrível; outros, consideraram o grpo uma piada. Embora a banda estivesse conquistando o público em seus shows, a verdade é que o álbum passou longe de ser um sucesso comercial, conquistando o disco de ouro somente dois anos após seu lançamento.
Uma das ideias de Neil para tentar alavancar as vendas foi um concurso de beijo. Era um “antigo truque de programas de rádio”, comenta Gene Simmons.
“Fazer um monte de casais irem até um shopping para um concurso de beijo. Eram maratonas: o casal se beijava pelo maior tempo possível, com um intervalo de cinco minutos a cada hora. Neil percebeu que estávamos numa posição perfeita para tirar proveito desse fenômeno, por conta do nome da banda. Ele sugeriu regravar uma música antiga de Bobby Rydell, ‘Twistin’ Time’ [Hora de Dançar], alterando para ‘Kissin’ Time’ [Hora de Beijar], e usar isso para promover uma série de concursos pelo país. Os vencedores ganhariam uma viagem com tudo pago para o Havaí e uma participação no programa matutino de entrevistas da televisão The Mike Douglas Show.”
Paul Stanley admite que achou tudo aquilo “brega”.
“Ia contra tudo o que eu vislumbrava para a banda. As bandas que eu tinha como referências não fariam algo do gênero. Mas Neil nos garantiu que a gravação seria usada como música de fundo em uma propaganda de rádio do concurso, e nada além disso. É claro que mal havíamos gravado uma versão não muito boa daquela canção e Neil já a havia lançado como single.”
Com “Nothin’ to Lose” no lado B, “Kissin’ Time” teve sucesso moderado, entrando no Top 100 no começo de maio. Ainda assim, a música não emplacou no rádio como Neil esperava.
Diante disso, o que restou para a banda foi continuar em turnê, mas isso se revelou um fardo financeiro para todos os envolvidos. Após Bill começar a custear as viagens do próprio bolso, eventualmente estourando o limite de seu cartão de crédito, a Casablanca rapidamente suspendeu a agenda de shows do grupo e o levou para Los Angeles para gravar outro álbum; um que fosse mais quente que o inferno…
Kiss — “Kiss”
- Lançado em 18 de fevereiro de 1974 pela Casablanca
- Produzido por Kenny Kerner e Richie Wise
Faixas:
- Strutter
- Nothin’ to Lose
- Firehouse
- Cold Gin
- Let Me Know
- Kissin’ Time (cover de Bobby Rydell)
- Deuce
- Love Theme from Kiss (instrumental)
- 100,000 Years
- Black Diamond
Músicos:
Paul Stanley (voz, guitarra rítmica)
Gene Simmons (voz, baixo)
Peter Criss (voz, bateria)
Ace Frehley (guitarra solo, backing vocals nas faixas 2 e 10)
Músicos adicionais:
Bruce Foster (piano, guitarra adicional)
Warren Dewey (barulho de carro de bombeiro na faixa 3)
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