A história do álbum de estreia dos Smiths e a criação do indie rock

Morrissey e Johnny Marr tinham todos os passos de sua trajetória planejados desde o início; como resultado, inventaram o rock independente como o conhecemos

A história do rock no Reino Unido, de onde vem o The Smiths, precisa ser contada de maneira diferente dos Estados Unidos, pois alguns artistas exerceram uma função que foi além da música. E não estamos falando simplesmente de caridade.

Os Beatles em seu auge eram sozinhos responsáveis por uma porcentagem notória da renda de exportação da Grã-Bretanha. Sex Pistols servem até hoje como o padrão estético do punk e, por extensão, do rock mainstream após 1977.

- Advertisement -

Entretanto, existe um grupo de legado extremamente importante no âmbito da Inglaterra. Uma banda que encapsulou na sua música, visual e ética a vida da classe trabalhadora do norte britânico.

Era uma época em que o governo de Margaret Thatcher deliberadamente deixou a máquina industrial da região apodrecer para acabar com a força dos sindicatos e, por consequência, do Partido Trabalhista. Metade do país foi efetivamente removido das promessas de fartura capitalista. Excluídos.

O rock em 1983 cooptou a estética do punk e descartou o resto. Agora era apenas som e fúria sem qualquer sentido, contado por idiotas. Isso ao menos do ponto de vista de dois jovens de Manchester. Eles pouco se conheciam, mas um deles resolveu remediar isso após assistir a um documentário sobre Jerry Leiber e Mike Stoller.

Essa é a história de como Morrissey recebeu Johnny Marr em seu quarto, os dois tocaram alguns discos juntos e menos de dois anos depois, os Smiths inventaram o rock independente como o conhecemos.

Dois garotos com ambição

Johnny Marr, guitarrista, e Steven Morrissey, vocalista, não podiam ser mais diferentes. Um era extrovertido, consumidor voraz de todo tipo de música e com uma ética de trabalho com relação à sua arte impressionante. O outro era um introvertido extremo preguiçoso que nunca saía de casa e era conhecido por falar mal de quase toda banda na face da terra. Ele gostava de pop dos anos 1960, New York Dolls e Patti Smith. Só.

Marr era o prodígio da cena mancuniana, desenvolvendo uma reputação de respeito entre os guitarristas mais velhos. O problema é que ele acabou se metendo em bandas muito mais tradicionais, a ponto de se ver aos 19 anos como um veterano cansado.

Exausto das pirotecnias de seus amigos mais velhos – como Billy Duffy, do The Cult –, Marr desenvolveu um estilo menos baseado em riffs, apostando em acordes que remetiam aos compositores profissionais dos anos 1950 e 1960. Entretanto, ele sabia da necessidade de um letrista – e só tinha uma pessoa em mente.

Morrissey só tinha para si a fama de um livro autopublicado sobre New York Dolls. Sua timidez extrema o impedia de socializar com a cena adequadamente, e isso também significava não fazer parte de bandas. Ele foi rapidamente o vocalista da banda punk de Billy Duffy, chamada Nosebleeds, antes deles se separarem.

Durante esse período, Morrissey escreveu letras que se tornaram canções do grupo, e essas foram mostradas por Duffy para seu amigo Marr. O guitarrista ficou impressionado com o trabalho. Muito se fala sobre as influências literárias na obra do vocalista e compositor, mas ele também sempre demonstrou um conhecimento profundo da canção pop tradicional.

O que cristalizou a ideia de procurar Morrissey na cabeça de Johnny Marr foi um especial de TV sobre Jerry Leiber e Mike Stoller. Uma das duplas de compositores mais bem-sucedidas da história da música pop, os dois também eram opostos em termos de personalidade e deram início à sua parceria quando o extrovertido Leiber bateu na porta do casmurro Stoller no Brill Building.

Marr tinha uma ideia específica com relação à estética do grupo que queria transmitir de cara para Morrissey. Se era para bater na porta da casa dele e arriscar uma negativa brutal, o faria colocando todas as cartas na mesa. Numa tarde em maio de 1982, ele se vestiu à maneira dos teddy boys do início dos anos 1960, tal qual seu ídolo visual, Stu Sutcliffe, e foi com seu amigo Stephen Pomfret até a casa do potencial vocalista.

Em clipe de uma entrevista para um documentário sobre a conexão Detroit-Manchester, Marr falou sobre o encontro com Morrissey:

“Quando ele me convidou para entrar na casa dele e ir ao quarto, a primeira coisa que ele fez foi me perguntar se eu queria botar um disco pra tocar. Esse foi o nosso primeiro ponto de contato. Eu fui até essa caixa de sapato com compactos de 45 rotações e escolhi ‘Paper Boy’, das Marvelettes, e toquei o B-Side que agora não lembro qual era [‘All The Love I Got’], mas na época eu gostava bastante. Eu achei que ele tava me testando, pra ver de onde eu vinha. Eu fiquei impressionado que ele tinha todos os singles das Marvelettes.”

Em uma conversa com o jornalista John Robb citada no livro “A Light That Never Goes Out: The Enduring Saga of The Smiths”, escrito por Tony Fletcher, Morrissey relembrou suas impressões iniciais de Marr:

“Eu não tinha dúvidas que Johnny era o momento e fiquei grato que nada havia acontecido comigo antes disso. Ele parecia meio rockabilly, um pouco ligadão e bem espirituoso, mas ao mesmo tempo duro e indiferente. Era o exato oposto dos poucos ensaios que tive com Billy [Duffy] porque com Johnny pareceu certo instantaneamente, e estávamos instantaneamente prontos.”

O terror abaixo da superfície

No primeiro encontro dos dois com o objetivo de compor, duas músicas surgiram que viriam a figurar no álbum de estreia deles: “The Hand That Rocks The Cradle” e “Suffer Little Children”. A primeira parece à primeira vista uma canção de amor de um pai por seu filho pequeno, apenas para revelar uma conotação mais sinistra de abuso para com uma criança. A segunda aborda um assunto ainda mais delicado: os assassinatos cometidos por Myra Hindley e Ian Brady entre 1963 e 1965.

Ambas as canções servem como exemplos de temas explorados pela banda: abuso infantil no lar e nas instituições e a negação da sociedade com relação aos horrores cometidos por seus habitantes. A dupla não teria papas na língua em nenhum momento durante sua carreira, explorando entre outros temas vegetarianismo, homossexualidade e antimonarquia.

O segundo encontro entre os dois foi mais estratégico. Eles decidiram sobre os aspectos estéticos da banda, como se vestiriam, os cabelos, as poses em fotos. Tudo indo contra a corrente do rock na época, inspirados pelos New York Dolls. Também decidiram operar como fábricas de hits profissionais, só que numa gravadora independente. Rough Trade Records era o plano, mesmo não tendo a menor ideia de como chegar lá.

Em “A Light That Never Goes Out: The Enduring Saga of The Smiths”, escrito por Tony Fletcher, Morrissey comentou sobre a abordagem da dupla:

“Nos movemos bem rápido. Eu pensei no nome, mas quem tocava tudo era Johnny. Nós dois tínhamos um senso de direção bem sólido e raramente discordamos, o que é incomum porque somos opostos – ele era todo empolgado por tudo e eu… não.”

O nome The Smiths não possui uma explicação oficial, mas suas conotações são evidentes. É o sobrenome mais comum em países de língua inglesa, então os estabelece como representantes do homem comum. Além disso, o pós-punk, new romantic e synth pop contavam com artistas com alcunhas cada vez mais elaboradas, tal qual Echo & the Bunnymen, Orchestral Manoeuvres in the Dark e Duran Duran. Uma denominação simples os colocava em oposição natural a eles, os apresentando como alternativa. 

Por fim, coloca o grupo em uma tradição de bandas britânicas conhecidas por seus nomes ou apelidos de uma sílaba só. Beatles, Stones, Kinks, Who, Clash, Jam. Eles queriam se inserir nesse panteão antes mesmo de tocar o primeiro show.

Montando a quadrilha

Stephen Pomfret, o amigo que serviu como ponte para Johnny Marr e Morrissey se conhecerem, foi convidado para tocar nos primeiros ensaios, mas isso era mais por educação. Não havia espaço na banda para dois guitarristas – e ele logo se retirou de cena.

O primeiro músico de fato a ser recrutado pro grupo foi o baixista Dale Hibbert, que logo apontou um problema. Uma das ideias estéticas iniciais era posicionar os Smiths como uma banda abertamente gay, num gesto de reconhecimento aos seus amigos na cena LGBTQ+ de Manchester qie eram fãs de rock. Entretanto, Marr era heterossexual e estava num relacionamento com Angie Brown, sua esposa até hoje. Por sua vez, o novo recruta também tinha uma namorada e os dois tinham uma filha juntos.

Vendo como isso colocaria a sexualidade da banda completamente em cima de Morrissey, Marr desistiu de declarar os Smiths como um grupo gay.

Morrissey, Marr e Hibbert gravaram uma demo com o baterista Si Wolstencroft consistida de “The Hand That Rocks The Cradle” e “Suffer Little Children”. A sonoridade da banda ainda não estava exatamente no ponto, ecoando demais o pós-punk local ao invés de soarem únicos.

Nada impressionado com Morrissey ou a música feita pelo grupo, Wolstencroft não durou muito tempo. Um desfile de bateristas seguiu, com um deles recebendo um esporro do vocalista por comentar que as canções soavam como Velvet Underground. Até que Mike Joyce apareceu, sob efeito de cogumelos, para seu teste.

Os integrantes ficaram impressionados pelo estilo de Joyce quando tocaram uma versão de uma nova música composta por Marr e Morrissey: “What Difference Does It Make?” Ao conhecerem mais sobre o baterista e sua família irlandesa católica, bem como considerarem o fato dele ter estudado com amigos da banda e ser boa pinta, ficou decidido: ele era o cara certo.

O primeiro show dos Smiths foi em 4 de outubro de 1982, num evento chamado “An Evening of Pure Pleasure”, no Ritz. A banda tocou apenas quatro canções: “The Hand That Rocks The Cradle”, “Suffer Little Children”, um cover de “I Want a Boy For My Birthday”, do girl group Cookies, e uma música nova da dupla chamada “Handsome Devil”.

Apesar de curta, a apresentação chamou atenção de algumas pessoas. A EMI lhes deu dinheiro para gravarem uma demo melhor, parte de uma estratégia da época de financiar o máximo desses tipos de empreitadas possível, na lógica de “vai que uma dessas compensa”.

Enquanto isso, Morrissey e Marr estavam compondo furiosamente, mas havia mais um problema a se lidar. Dale Hibbert não era o cara certo pro baixo, e Johnny sabia. O baixista ideal pros Smiths era um dos melhores amigos dele, Andy Rourke. Músico tão prodigioso quanto o guitarrista, ele havia se envolvido com heroína a ponto da amizade entre os dois se fraturar.

Em sua autobiografia, “Set The Boy Free”, Marr escreveu sobre retornar à casa do amigo e recrutá-lo para os Smiths:

“Eu sabia que teria que trazer Andy Rourke pra ser o baixista. Não tinha saco ou vontade de testar mais desconhecidos, que eu sabia não serem tão bons. Estava empolgado com a ideia de ter Andy na banda, mas ainda estava zangado por causa da heroína e incerto quanto a como as coisas seriam resolvidas. Fui na casa dele, onde passei tanto do meu tempo e sabia que alguns antigos amigos estavam, e todos eles estavam na sala, exatamente onde os havia deixado um ano antes, só que eles todos pareciam que tinham piorado anos a mais. Tudo parecia parado, o ar estava morto. Um ex-amigo pulou pra me confrontar sobre a razão do meu retorno enquanto os outros se escondiam com um misto de vergonha e burrice drogada. Eu não planejei ficar lá por muito tempo e fui no quarto dos fundos falar com Andy sozinho. Foi bom vê-lo, e ele ficou surpreso que eu apareci. Ele parecia o mesmo de sempre e me falou sobre o trabalho dele numa serralheria, como ele odiava o emprego, mas ao menos significava que estava trabalhando todo dia e eu fiquei contente que ele não estava no mesmo poço dos zumbis no cômodo ao lado. Eu me mantive ao assunto da vez, falei sobre a banda nova que estava formando e perguntei se ele queria participar. Falei pra ele que havia a condição dele não usar mais heroína. Eu toquei pra ele uma fita do show no Ritz, ele gostou do que ouviu e falou que topava tocar na demo da EMI. Eu saí de lá pela última vez e pensei se tudo ia funcionar, e se os Smiths eram agora uma banda. Poderia ser perfeito. Eu coloquei toda minha fé naquilo, e eu só esperava que não teríamos problemas.”

A segunda demo dos Smiths continha “What Difference Does It Make?”, “Handsome Devil” e a nova “Miserable Lie”. A nova formação com Rourke no baixo ficou evidente ser a ideal de cara. Eles soavam como uma unidade completa, a ponto dos integrantes caírem na gargalhada com a qualidade do som. Mesmo assim, a EMI preferiu não assinar com a banda.

Esse amor é diferente porque é nosso

Uma vez formada, os Smiths começaram a adquirir um aspecto mais profissional. Johnny recebeu uma oferta do amigo e mentor Joe Moss para gerenciar uma filial nova de sua loja. Esse trabalho lhe dava a oportunidade também de usar o espaço para ensaios da banda fora do horário comercial. 

Moss também ofereceu a Rourke o apartamento no porão de sua casa, para o baixista poder se remover do ambiente onde estava e não sucumbir a tentações. Eventualmente, ele se tornaria o primeiro empresário do grupo.

O segundo show dos Smiths ocorreu em janeiro de 1983, na boate gay Manhattan Sound. A banda tocou no meio da pista de dança, cercada pelo público enquanto filmes estrelados pela drag queen Divine eram projetados na parede. Em meio a tudo isso, contudo, ninguém conseguia tirar seus olhos de Morrissey.

A confiança do vocalista sempre havia sido um ponto de preocupação entre os integrantes. Ele não cantava com tanta convicção, e seu alcance vocal era limitado a ponto dos músicos precisarem afinar tudo um tom acima para compensar. Naquela noite, contudo, Morrissey saiu de seu casulo, esbanjando seu estilo hoje icônico. Ao final do show, ele até jogou confete no público sem avisar o resto dos Smiths antes.

Dez dias depois, os Smiths fizeram seu terceiro show, na lendária Haçienda. Apesar de tocarem lá e serem frequentadores da boate, parte fundamental do ethos da banda foi construída em oposição à proprietária do local, Factory Records, e seu chefão Tony Wilson. Ironicamente, esse concerto foi filmado de maneira profissional, então atrelou grupo e instituição para sempre nesse primeiro registro oficial (clique aqui para assistir). Especialmente considerando como é uma evidência deles terem controle absoluto de seu estilo desde então.

O set reuniu oito canções, uma delas composta dias antes do show. Tudo começou após um jantar na casa da família de Johnny Marr em janeiro de 1983. Ele se sentou com um violão e começou a tocar um riff. Nascia “Hand In Glove”.

Em “A Light That Never Goes Out: The Enduring Saga of The Smiths”, Johnny Marr contou sobre sua impressão inicial:

“Foi pura inspiração. Eu não tinha um conceito antes de tocar. Não parti da ideia de que ‘a gente precisa de uma nessa levada’. Não estava tentando fazer uma mudança de acorde mais rápida ou mais lenta ou burilando. Só tinha um riff exuberante que a gente precisava transformar em uma música o mais rápido possível.”

Com Angie Brown no volante de seu Fusca, os dois foram direto para a casa de Morrissey em Stretford, rezando que ele estivesse em casa. Marr trabalhou nos acordes o caminho inteiro para não esquecer da ideia. Sua namorada só fez um pedido, para a canção soar mais como Iggy Pop.

Morrissey estava em casa, e após registrarem a música num gravador de fita cassete do vocalista, ele escreveu a letra naquela noite. Em vez de continuarem trabalhando na canção com mais shows, eles logo entraram num estúdio no final de fevereiro de 1983 para gravá-la. Era o primeiro single da banda.

Uma gravação ao vivo de “Handsome Devil” feita no show da Haçienda era o lado B. Eles só precisavam de alguém para lançar o single.

Emboscada no setor de carga

O objetivo máximo sempre havia sido a Rough Trade, então Johnny Marr e Andy Rourke se meteram num trem rumo a Londres. Assim como bateu na porta de Morrissey, agora eles fariam o mesmo na gravadora.

Felizmente para a banda, a Rough Trade estava à procura de artistas exatamente como eles. Inicialmente, o responsável por vendas da gravadora, Simon Edwards, ficou impressionado o suficiente para dizer que poderiam distribuir o compacto. Marr e Rourke arriscaram a sorte e perguntaram se estariam interessados em lançar sob o selo oficial.

Edwards disse que dependeria de Geoff Travis, naquela hora numa reunião. Os dois Smiths ficaram à espreita, esperando o chefão sair da sala de conferências e dar uma entrada. Johnny Marr escreveu em “Set The Boy Free”:

“Estava claro que isso era o mais próximos que conseguiríamos chegar naquele momento. Eu não ia perturbar o homem ou me prostrar na frente dele, mas meu instinto também me falou que estava à beira de um momento crucial. No que a gente virou para sair do prédio, eu fiz com a cabeça pro Andy me seguir até o armazém, onde havia esse setor de carga e descarga com centenas de caixas. Eu comecei a agir como se estivesse empilhando discos. Até aí, tudo bem. O setor tava tão agitado com gente entrando e saindo que ninguém percebeu os penetras, até mesmo um parecido com Stuart Sutcliffe. Eu fiquei de olho no escritório onde vi Geoff, esperando ele sair. Uma hora e pouco passou, e aí vi ele passar pela porta e ir pelo corredor, bem ocupado. Era a minha chance. Eu fui até ele e tirei a nossa fita, e no que ele ia passar por mim, eu peguei o braço dele e falei, ‘Geoff… oi’. Ele parou, e eu fiquei surpreso com o quão inusitado aquele momento era. ‘Eu estou numa banda de Manchester, The Smiths, e gravamos uma canção que queremos lançar via Rough Trade’. Eu precisava fazer ele saber do nosso compromisso de lançar o single, então falei: ‘Se você não quiser lançar pelo selo, nós podemos formar o nosso e você distribuir’. Geoff foi calmo e aparentemente nada preocupado de ter sido interpelado por um baixinho do Norte da Inglaterra.

‘Eu ouço no fim de semana’, ele disse.

Eu acreditei nele. Na minha felicidade e entusiasmo, falei: ‘Você nunca escutou nada parecido antes’.”

Travis ouviu a demo no fim de semana e Johnny Marr estava certo. Ele nunca havia ouvido nada parecido antes. Naquela segunda-feira, ligou para Joe Moss e fez sua oferta para que os Smiths assinassem com a Rough Trade. Sem sequer ver a banda ao vivo antes.

O primeiro show dos Smiths em Londres, dia 23 de março no Rock Garden, foi cercado de hype. No mesmo dia da apresentação, o NME publicou uma resenha super positiva do concerto na Haçienda. Uma entrevista para a i-D havia saído dias antes. Naquela noite, eles provaram que tudo dito na imprensa era verdade e mais ainda. 

O impacto da performance em Geoff Travis foi especialmente forte. O drama eterno das gravadoras independentes é ver artistas com potencial comercial serem fisgados por majors rapidamente sem poderem fazer nada. O chefão da Rough Trade resolveu que apostaria alto nos Smiths, e renovou sua oferta para algo nunca antes visto no underground: um contrato de longo prazo.

Hype vira fama para os Smiths

“Hand In Glove” foi lançado como compacto em maio de 1983. A capa contém uma foto tirada do livro “The Nude Male”, escrito por Margaret Walters. Na imagem, vemos um homem, George O’Mara, nu de costas para a câmera. Isso, aliado ao conteúdo romântico da letra, mandou uma mensagem: apesar de Johnny Marr ter decidido não empurrar o conceito do grupo ser gay, Morrissey não tinha problema algum com a ideia.

O single chegou ao 3º lugar das paradas independentes, mas não arranhou o Top 40 inglês. Isso não impediu a banda de angariar fãs nos círculos underground e da indústria. Um deles foi o produtor de John Peel, que conseguiu para os Smiths uma sessão a ser transmitida no programa do lendário radialista.

Nessa Peel Session, eles gravaram quatro músicas: “Miserable Lie”, “What Difference Does It Make?”, “Handsome Devil” e a inédita “Reel Around the Fountain”. A mixagem da BBC revelou nuances das composições até então não vistas. E Morrissey cada vez mais melhorava como vocalista.

O sucesso dessa transmissão gerou não só outra sessão em outro programa, mas uma entrevista com o DJ David Jensen no dia 4 de julho. Nela, Morrissey revelou que a banda estava gravando seu álbum de estreia com o produtor Troy Tate, ex-integrante do A Teardrop Explodes. O plano era lançar o disco em seis semanas.

O problema é: enquanto isso, eles ganharam a atenção da direita moralista da pior maneira possível. O tabloide inglês The Sun colocou a banda na capa da edição de 5 de setembro, os acusando de apologia ao abuso sexual de menores usando uma frase de uma resenha escrita pelo jornalista David McCulloch para a Sounds sobre como o verso “Climb upon my knee, Sonny Boy” [“senta no meu joelho, filhão”] de “The Hand That Rocks The Cradle” era uma referência a uma cantada usada por pedófilos.

O verso, na realidade, era uma referência ao cantor americano Al Jolson. McCulloch não possuía evidência alguma de ser uma cantada usada por pedófilos. Enquanto isso, como o público veio a descobrir décadas depois, tabloides britânicos foram cúmplices no acobertamento de pedofilia cometida por celebridades tradicionais.

Felizmente, o Sun era um jornal tão detestado quanto lido, então uma parte considerável do público britânico defendeu a banda iniciante. Mesmo assim, o mal-estar gerado fez os Smiths reverem a decisão de lançar “Reel Around The Fountain” como segundo single. A BBC, querendo mais material dos Smiths para não tocar mais as canções polêmicas, encomendou outra Peel Session.

Melhor ainda pra eles. Morrissey e Marr continuavam em seu ritmo alucinado de composição. Nessa sessão, no dia 14 de setembro, foram gravadas “Back To The Old House”, “Still Ill”, This Night Has Opened My Eyes” e uma música nova cuja guitarra surgiu a partir da influência de Roddy Frame, líder do Aztec Camera, em Johnny Marr. “This Charming Man”. Presente na gravação, Geoff Travis proclamou na hora que esse seria o segundo single dos Smiths.

Smiths acham um produtor

A esse ponto, os Smiths tinham oito músicas lançadas em Peel Sessions – e nada de disco. O público britânico passava suas noites os ouvindo no rádio e seus dias em fitas cassete gravadas das transmissões. O lançamento de um álbum era imperativo. Só tinha um problema: Morrissey e Johnny Marr não estavam mais satisfeitos com o resultado do trabalho feito com Troy Tate.

O material gravado com Tate viria a aparecer em B-sides e compilações, mas a banda e Rough Trade precisavam encontrar um produtor melhor. O escolhido acabou sendo John Porter, ex-baixista do Roxy Music, que comandou a segunda sessão feita pelos Smiths para David Jensen. 

Inicialmente, o plano era para que Porter remixasse o material gravado com Troy Tate, mas ele logo informou à Rough Trade ser mais fácil gravar tudo de novo. O produtor logo criou uma cumplicidade com a banda, especialmente com Marr. 

Em entrevista ao livro “A Light That Never Goes Out: The Enduring Saga of The Smiths”, o guitarrista falou sobre a relação com Porter:

“Ele foi meu mentor no estúdio. Eu era como uma esponja e tinha muita energia, e ele tinha muita experiência sem nunca ter essa oportunidade de ensinar. Eu não podia ter arrumado um músico melhor, porque ele é um mestre de gravar guitarras e super, super paciente. Então qualquer ideia que ele jogava na minha direção eu pegava e saía correndo – e vice-versa.”

Porter ficou encarregado de produzir quatro canções para o próximo single. “This Charming Man”, que seria o lado A, assim como “Still Ill”, “Accept Yourself” e “Wonderful Woman”. O orçamento era 500 libras, então precisavam fazer o dinheiro valer.

A primeira ideia do produtor foi colocar uma intro de guitarra na frente de “This Charming Man”, tal qual singles antigos de Chuck Berry. Isso deu início a um hábito por parte da banda de dar início aos seus compactos com uma frase instrumental marcante. 

E nada mais marcante que o riff de abertura de “This Charming Man”. Além disso, o arranjo da canção ganhou um sabor mais reminiscente de Motown, com direito a paradas dramáticas no instrumental. Após a primeira versão do single ter sido recusada, eles gravaram tudo de novo numa versão ainda mais enxuta.

Para driblar o problema que tinha com a noção de tempo de Mike Joyce, Porter resolveu fazer Marr e Rourke gravarem inicialmente em cima de uma reconstrução do take original numa bateria eletrônica LinnDrum, e depois o baterista gravou seu take a partir disso. Funcionou.

“This Charming Man” foi lançado dia 31 de outubro de 1983 e chegou ao 25º lugar nas paradas britânicas oficiais. Três semanas após o lançamento, eles foram convidados a aparecer no programa “Top of The Pops” e fizeram uma aparição lendária na história da TV britânica, com Morrissey fazendo troça do playback obrigatório ao empunhar um ramalhete de flores ao invés de um microfone.

The Smiths tinham um hit. Porter recebeu a incumbência de produzir o álbum de estreia, a ser gravado em meio à turnê britânica deles. Eram em sua maioria regravações de canções já conhecidas do público através de shows e Peel Sessions.

Mesmo assim, o álbum “The Smiths” consegue ser um documento de uma banda com personalidade própria. Enquanto a compilação subsequente “Hatful of Hollow” é apenas um excelente apanhado, o disco de estreia da banda pulsa com desejo, perigo e o senso de humor mórbido demonstrado por Morrissey e Marr naquela primeira reunião de composição.

Lançado no dia 20 de fevereiro de 1984 com uma capa ostentando uma imagem sem camisa do ator Joe D’Allesandro tirada do filme “Flesh”, de Andy Warhol, “The Smiths” chegou ao 2º lugar das paradas de discos no Reino Unido.

Dois meses depois, a cantora dos anos 1960 Sandie Shaw conseguiu um hit na forma de um cover dela de “Hand In Glove”, que atingiu o 27º lugar nas paradas de compactos. Morrissey e Marr a escolheram como alguém com quem gostariam de trabalhar no começo de sua parceria.

The Smiths durariam mais três anos e meio. Nesse tempo, lançaram mais três álbuns e fundamentalmente mudaram a cultura musical britânica. Antes deles, havia pós-punk e algumas noções de pop alternativo. Eles deram ao mundo o conceito de indie rock praticado até hoje de uma maneira ou outra. O que para o grupo era uma decisão baseada em controle criativo – trabalhar com um selo independente – acabou se tornando uma estética em si.

The Smiths — “The Smiths”

  • Lançado em 20 de fevereiro de 1984 pela Rough Trade
  • Produzido por John Porter

Faixas:

  1. Reel Around the Fountain
  2. You’ve Got Everything Now
  3. Miserable Lie
  4. Pretty Girls Make Graves
  5. The Hand That Rocks the Cradle
  6. Still Ill
  7. Hand in Glove
  8. What Difference Does It Make?
  9. I Don’t Owe You Anything
  10. Suffer Little Children
  11. This Charming Man (faixa bônus das versões LP e cassete dos EUA e cassete do Reino Unido)

Músicos:

  • Morrissey (voz)
  • Johnny Marr (guitarra, gaita)
  • Andy Rourke (baixo)
  • Mike Joyce (bateria, percussão na faixa 7)

Músicos adicionais:

  • Paul Carrack (piano e órgão nas faiaxs 1, 2 e 9)
  • Annalisa Jablonska (vocais nas faixas 4 e 10)

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Twitter | Threads | Facebook | YouTube.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidadesA história do álbum de estreia dos Smiths e a criação do...
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

2 COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades