Em meados da década de 1980, Bruce Springsteen se tornou um dos maiores rock stars do planeta. O Wall Street Journal o chamou de “o roqueiro mais influente na América desde Elvis”. De reles artista do povo, fora promovido à elite das vendas de discos onde reinaria lado a lado com Michael Jackson e Prince e lotaria estádios.
Neste período, suas letras abordavam os males sociais resultantes da dura política econômica do presidente americano Ronald Reagan, representante do partido republicano que governou o país entre 1981 e 1989. Aparentemente, contudo, as composições passaram despercebida pelas conversas de gabinete na Casa Branca.
Este foi o caso específico de “Born in the U.S.A.”, música que dá nome ao álbum lançado pelo artista em 4 de junho de 1984.
Da inspiração com Elvis à voz dos oprimidos
Bruce Springsteen é natural de Freehold, uma cidade industrial no condado de Monmouth, estado de Nova Jersey. Em 1957, foi um dos milhões de americanos que assistiram a Elvis Presley no “Ed Sullivan Show”. Virou-se para a mãe naquele 6 de janeiro e disse: “Quero ser exatamente… como… ele…”.
Em 9 de maio de 1974, já como artista solo, promovendo seu segundo trabalho, “The Wild, The Innocent & The E. Street Shuffle” (1973), Bruce apresentou-se no Harvard Square Theatre (atual Brattle Theatre), em Cambridge, Massachusetts. O crítico de rock Jon Landau estava na plateia. Entusiasmado com o que viu, ele escreveu o que é considerado pelo britânico The Guardian a resenha de show mais famosa da história da crítica musical:
“Quinta-feira passada, no Harvard Square Theatre, vi meu passado roqueiro piscar diante dos meus olhos. E vi o futuro do rock ‘n’ roll. Seu nome é Bruce Springsteen. E numa noite em que eu precisava me sentir jovem, ele me fez sentir como se eu estivesse ouvindo música pela primeira vez (…) Ele é um punk, um poeta de rua, um bailarino, um ator, um bufão, um líder de banda de bar, um guitarrista dos infernos, um cantor extraordinário e um legítimo compositor de rock ‘n’ roll. Ele lidera uma banda como se fizesse isso desde sempre e desfila na frente dela como um cruzamento entre Chuck Berry, Bob Dylan em início de carreira e Marlon Brando.”
Depois disso, Landau tornou-se amigo de Springsteen, pediu demissão do jornal onde trabalhava e virou uma espécie de imediato do cantor; conselheiro geral para assuntos artísticos, produtor e, finalmente, empresário. Foi Landau quem deu a Springsteen os livros, os discos e as fitas de vídeo que o fariam olhar para a própria história e repensar-se enquanto artista. Ele passaria a prestar atenção no que acontecia nas cidades e comunidades agrícolas vizinhas e a visualizar os arquétipos da sociedade americana.
Ouvir Hank Williams e Woody Guthrie o fez querer sair da esfera da liberação pessoal, do rock enquanto expressão de juventude, e escrever sobre problemas sociais. A ideia era fazer música para a classe trabalhadora, cantar sobre veteranos de guerra, imigrantes e oprimidos: a América que Ronald Reagan deixaria de lado.
À medida que adquiria esse olhar, Bruce foi se tornando mais e mais politizado. Tal consciência política pode ser sentida nas entrelinhas de “Darkness on the Edge of Town” (1978), ganhando maior densidade nos anos seguintes.
O álbum que redefiniu Bruce Springsteen
O ano de 1984 viu o lançamento do que é considerado o álbum mais comercial da carreira de Springsteen. Em “Born in the U.S.A.”, Bruce finalmente revelou seu lado mais pop, conseguindo, com isso, mobilizar pessoas que normalmente não compravam discos, o que aumentou significativamente sua margem de lucro. De acordo com o biógrafo Peter Ames Carlin, Springsteen “viu o sucesso como uma oportunidade para melhor representar as pessoas sobre as quais cantava (…) ou talvez o sonho de ser exatamente como Elvis estivesse perto demais para deixar passar”.
O álbum, apesar das melodias cativantes, compreende, de ponta a ponta, canções sobre tragédias nacionais. Enquanto “Darlington County” narra a história de dois caras que saem da cidade de Nova York em busca de trabalho no condado de Darlington, na Carolina do Sul, mas um deles acaba sendo preso, “My Hometown” consiste num retrato sombrio da vida da classe trabalhadora na era Reagan. “They’re closing down the textile mil” (“Eles estão fechando a fábrica têxtil…”), canta Springsteen. Em 1985, um ano após o lançamento da música, a empresa 3M fechou sua fábrica em Freehold, trazendo esse verso à dura realidade. No fim das contas, é muito mais dor do que alegria.
Mas não é só isso: em “Born in the U.S.A.”, Springsteen canta sobre diversos outros tópicos comuns ao universo do americano médio na casa dos trinta anos — ele próprio tinha 35 quando o álbum foi lançado. “I’m on Fire” é sobre paixões que provocam suores noturnos. “No Surrender” e “Glory Days” abordam amizades, encontros e desencontros. “Bobby Jean” tem como tópico despedidas — no caso, supostamente ao guitarrista Steven Van Zandt, que deixou a E Street Band durante a gravação do disco para seguir outros projetos.
Em agosto de 1984, o single “Dancing in the Dark” atingiu o segundo lugar na parada americana. “Born in the U.S.A.”, o primeiro CD produzido em solo americano — a então nova tecnologia era fabricada exclusivamente no Japão e a inserção no Ocidente se dava lenta e gradualmente —, já havia ultrapassado as 10 milhões de cópias vendidas.
Nesse mesmo mês, às vésperas das eleições presidenciais, estavam a todo vapor as campanhas de Ronald Reagan, que tentava o segundo mandato, e de seu adversário, o democrata Walter Mondale. Na tentativa de reconquistar a popularidade do presidente junto às camadas mais baixas da sociedade, os marqueteiros da campanha de reeleição tentaram comprar os direitos de “Pink Houses”, de John Mellencamp, que se recusou a vendê-los. Daí seguiu-se uma das maiores gafes da história do marketing político.
Equívoco presidencial
Em 13 de setembro, o autor conservador George F. Will publicou, no Washington Post, um artigo com o sugestivo título “Nothing Like Being Born in U.S.A.”:
“Não há qualquer pitada de androginia em Springsteen, que se move de um lado para o outro do palco usando camiseta e bandana, semelhante a Robert De Niro nas cenas de ação em ‘O Franco Atirador’. Isto é rock para metalúrgicos. (…) Springsteen, produto da industrial Nova Jersey, é o trovador dos blue collar. Mas se isto representar que existe uma classe em luta, seu hino — sua ‘Internacional’ — é a canção que batiza a turnê que se estenderá por 18 meses e percorrerá todo o mundo: ‘Born in the U.S.A.’. A posição política de Springsteen não parece clara para mim, mas bandeiras se agitam na plateia enquanto ele canta sobre tempos difíceis. (…) e o canto a respeito de fábricas que fecham as portas e outros problemas são pontuados por uma afirmação grandiosa e contagiante: ‘Born in the U.S.A.’! (…) Se todos os americanos — operários e empresários, das indústrias têxtil, automobilística ou metalúrgica — empregassem em seus esforços diários a energia e confiança que Springsteen e sua banda depositam nas músicas que tocam, não haveria razão para o protecionismo.”
A convite do baterista Max Weinberg, Will assistiu a Springsteen em uma das primeiras datas da turnê de “Born in the U.S.A.”. Os números aos quais teve acesso — 202 mil ingressos para uma temporada de dez shows foram vendidos em menos de 24 horas — fizeram-no pensar que o cantor seria um valioso aliado na campanha de Reagan.
Notoriamente apartidário, Springsteen declinou a oferta. Entretanto, os assessores do presidente acharam que seria uma ótima ideia se este mencionasse o cantor em um discurso realizado justamente em Nova Jersey.
Diante de milhares de pessoas, Reagan proferiu:
“O futuro da América reside nos milhares de sonhos que existem em vossos corações; reside na mensagem de esperança das canções que nossos jovens admiram; nas canções de Bruce Springsteen, filho de Nova Jersey.”
A imprensa foi implacável. Obviamente, os responsáveis pelo texto não se deram ao trabalho de prestar atenção à letra da faixa-título de “Born in the U.S.A.”.
No terceiro volume de “Born to be Wild: The Golden Age of American Rock” (2014), o editor sênior da revista Rolling Stone, David Fricke, dá o seu parecer:
“A canção é sobre um homem nascido nos Estados Unidos que volta do Vietnã com uma visão totalmente deturpada da sociedade americana. Não é um mantra patriótico, e sim uma ode a um sistema falido. O Grande Comunicador, quem diria, se enganou completamente em relação a um dos maiores clássicos da história do rock.”
Springsteen comentou a gafe em entrevista para a National Public Radio em 2005:
“Foi o primeiro caso de republicanos se apropriando de toda e qualquer coisa que a eles parecesse fundamentalmente americana, e se você se opusesse a isso, era rotulado de antipatriota. Sou americano e escrevo sobre o país onde vivo e sobre coisas com as quais me deparo nesta vida; coisas que me sufocam e contra as quais eu sempre lutarei.”
Inspiração, desespero e mal-entendidos
“Born in the U.S.A.” foi escrita no mesmo surto de inspiração subsequente à turnê de “The River” (1980) que deu origem ao lúgubre “Nebraska” (1982). Antes de se tornar a peça central do álbum de mesmo nome, tratava-se de uma canção acústica chamado “Vietnam”.
A inspiração veio de diversas fontes. Springsteen leu “Born on the 4th of July”, livro autobiográfico escrito por Ron Kovic, que conta sua história como soldado americano que, após ser ferido no Vietnã e ficar paraplégico, torna-se um ativista político em favor da paz. Além disso, o cantor passou parte de 1983 dirigindo pelo país, realizando trabalhos junto aos veteranos da guerra do Vietnã. Pôde testemunhar todo o descaso para com os ex-combatentes.
A canção foi engavetada e revivida somente no final de 1982, com um novo arranjo que incluía um riff de seis notas no sintetizador e o que o produtor Chuck Plotkin, à época, se referiu como “uma bateria explosiva (…) como se Max Weinberg estivesse usando rojões como baquetas”. Nesta nova roupagem, o clima otimista do refrão ofusca versos que são puro desespero. Em razão disso, milhões, inclusive Will, a interpretaram como mero exercício de ufanismo americano.
Estilo de vida de magnata
Com o álbum superando a marca dos 11,5 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos, Bruce Springsteen começou a desfrutar dos prazeres da vida de multimilionário. Comprou uma propriedade de 14 milhões de dólares em Beverly Hills e investiu em carros antigos, cavalos e fazendas.
As turnês também subiram de nível: hotéis cinco estrelas, jatinhos particulares e massoterapeutas. Não tardou para que a mídia o definisse como “um homem rico vestido de pobre”.
Sua base de fãs, no entanto, não só não comprou essa narrativa, como passou a chamá-lo pelo apelido carinhoso que ostenta até hoje: The Boss.
* O texto acima foi extraído e adaptado de “Rock ‘N’ Reagan: Música e Política nos Estados Unidos da América” (2014), monografia apresentada ao Curso de Graduação em Comunicação Social, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Jornalismo pelo autor.
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