Alguns álbuns, como “Californication”, do Red Hot Chili Peppers, vão além de seu impacto comercial. Podem vir a dominar a percepção cultural de uma época, redefinir como encaramos o legado de um artista ou até cimentar a posição de uma banda no panteão do rock.
Num âmbito mais privado, certos trabalhos são capazes de salvar uma banda de seu fim ou ajudar músicos a superar um período horrendo de suas vidas, apresentando-lhes novamente ao grande público. Discos têm o poder de ressuscitar pessoas.
“Californication” é um álbum no qual todos esses fenômenos ocorrem. Uma convergência absurda de fatores levou o Chili Peppers a fazer esse disco. No final, não só a banda foi salva, mas John Frusciante efetivamente voltou à vida.
Nada contra popularidade, mas…
É pouco dizer que o Red Hot Chili Peppers era uma das maiores bandas dos EUA ao final de 1991. Eles lançaram em setembro daquele ano seu quinto álbum de estúdio, “Blood Sugar Sex Magik”, um trabalho responsável não apenas por alavancá-los ao estrelato, mas também expandir a paleta sonora do grupo a níveis antes não imaginados.
A banda começou nos anos 1980 como uma versão punk do Parliament-Funkadelic, mas desde a entrada do guitarrista John Frusciante, em 1988, elementos mais roqueiros foram adicionados ao som deles. Prodígio das seis cordas, o músico tirava inspiração de diversos luminários da tradição do instrumento, como Jimi Hendrix, Jeff Beck e Frank Zappa, mas sua contribuição principal era um senso apurado de melodia.
Isso gerou hits gigantescos. “Give It Away” refletia o legado do grupo até então e se tornou a primeira canção a liderar a recém-criada parada Modern Rock da Billboard, em setembro de 1991. E “Under the Bridge”, uma balada com letra do vocalista Anthony Kiedis inspirada em como seu vício em heroína afetou sua relação com a atriz Ione Skye, chegou ao 2º lugar da Billboard Hot 100, o maior sucesso da banda até então.
Para se ter uma ideia da dimensão do Red Hot Chili Peppers nessa época, é preciso levar em conta uma informação. A turnê do álbum tinha como atrações de abertura Pearl Jam, Smashing Pumpkins e Nirvana. Três artistas que viriam a definir a década, com um desses já nessa posição. E mesmo assim o headliner era o quarteto californiano.
E daí surgiram os problemas. Bem, começaram antes disso, como Frusciante contou à Raw Magazine em 1994:
“Eu tive uma premonição estranha que precisava sair imediatamente após finalizar minhas partes de guitarra em ‘Blood Sugar…’. Eu dizia pra mim mesmo: ‘Sei que você não tem razão alguma para isso, mas você precisa sair da banda’. Mas eu não conseguia criar coragem, porque sabia que eles não me deixariam. Não fazia sentido para eles. Mas eu tinha essa sensação que a estrada ia f#der comigo. A estrada estava f#dendo o Flea há anos, e seria escroto da minha parte sair ali, mas eu tinha certeza que precisava.”
A relação entre Frusciante e Kiedis já era estritamente profissional desde os tempos de “Mother’s Milk” (1989), álbum anterior. O único amigo de verdade do guitarrista no Red Hot era o baixista Flea, que chegou a lhe aconselhar a sair caso fosse melhor para ele psicologicamente.
Um dos principais aspectos que perturbavam Frusciante era a fama crescente do grupo. Ele falou sobre o assunto durante a entrevista à Raw Magazine:
“Não é como se eu fosse contra popularidade. Quando eu tinha 17 anos e estava no último show do Red Hot Chili Peppers antes de eu entrar para a banda, Hillel [Slovak, guitarrista original do grupo que faleceu de overdose de heroína] me perguntou: ‘Você ainda gostaria da banda se a gente ficasse popular a ponto de tocar numa arena de basquete?’. E eu falei: ‘Não. Isso arruinaria a graça da banda. Não existe muita diferença entre a plateia e a banda no momento.’ Havia uma vibe histórica nos shows deles, nada de frustração relacionada à plateia não poder sair de seus assentos marcados. Eu nem assistia aos shows. Eu ficava tão empolgado que ficava batendo de um lado ao outro da rodinha o tempo inteiro. Eu me sentia parte da banda e todas as pessoas com sensibilidade mais apurada dentre o público também. Então não conseguia imaginar a banda tocando numa arena de basquete. Quando chegamos a esse patamar de popularidade, fiquei incomodado por isso e várias outras razões.”
“Blood Sugar Sex Magik” chegou ao 3º lugar da Billboard 200 e, até hoje, vendeu 13 milhões de cópias. Frusciante tentava se dissociar da situação através de álcool, maconha e muita heroína. Essa última droga era consumida de forma escondida do resto do grupo, levando em conta o passado de Anthony Kiedis e Flea.
Após um show na cidade de Tóquio em maio de 1992, Frusciante anunciou sua saída repentina do grupo. Foi tão súbito o anúncio que a Rolling Stone precisou remover o guitarrista da infame capa na qual os integrantes aparecem com apenas meias cobrindo suas partes íntimas.
Substituindo o filho pródigo
Anthony Kiedis e Flea imediatamente se propuseram a encontrar um substituto. Zander Schloss, um amigo de longa data dos dois, ensaiou com o Red Hot Chili Peppers por quatro dias antes de uma turnê australiana. Ótimo instrumentista, mas não era a vibe certa. Datas canceladas e a banda retornou aos Estados Unidos.
Dave Navarro foi considerado para a posição, especialmente por ter se desvinculado do encerrado Jane’s Addiction. Entretanto, seu vício em drogas estava pesado demais e logo a hipótese foi descartada. O escolhido para substituir Frusciante acabou sendo Arik Marshall, um guitarrista de Los Angeles que tocava no grupo Marshall’s Law com o irmão.
Marshall não durou muito tempo no Red Hot Chili Peppers. Porém, conta com a distinção curiosa de aparecer como integrante do grupo no episódio de “Os Simspons”, chamado “Krusty Sai do Ar”.
O guitarrista foi demitido um ano depois da saída de Frusciante. Kiedis alegou, anos depois, em sua autobiografia “Scar Tissue”, que tentativas frustradas de compor com Marshall após a turnê contribuíram para a decisão.
O grupo começou a testar vários guitarristas de Los Angeles para a posição. O adolescente Jesse Tobias – depois parte das bandas de Alanis Morissette e Morrissey – se tornou o favorito.
Entretanto, como o vocalista escreveu em “Scar Tissue”, uma confluência de fatores levaram o Red Hot a seguir por um rumo diferente:
“Ensaiamos muito com Jesse, mas ninguém estava satisfeito, particularmente Flea. Eu ainda tinha esperança de que a coisa funcionasse, até que Chad [Smith, baterista] veio a mim e disse: ‘acho que Dave Navarro está pronto para tocar conosco’. Dave sempre fora nossa primeira opção desde a saída de John. Já havíamos nos aproximado dele antes, mas ele estava ocupado demais com seus projetos paralelos depois que o Jane’s Addiction terminou. Um tempo depois, Chad se tornou seu companheiro de noitadas e tinha certeza de que Dave adoraria fazer parte da banda. Era a situação ideal.”
A primeira aparição pública de Dave Navarro como integrante do Red Hot Chili Peppers foi no festival Woodstock ‘94. O grupo usou a apresentação para mostrar material novo. Apesar de apresentarem uma frente unida ao público, o período de adaptação do guitarrista novo foi delicado, como ele contou ao autor Jeff Apter no livro “Fornication: The Red Hot Chili Peppers Story”:
“Eu tinha essa noção estereotipada da banda. Esperava que eles fossem doidos, engraçados, cheios de gracinha – tudo isso coisas que eu geralmente não tive na minha trajetória. E eles não eram uma banda que nem o Mötley Crüe, que dava pra meter qualquer guitarrista e funciona. Eu me senti estranho por muito tempo porque a banda tocava um estilo de música que eu não tocava.”
Red Hot e Navarro tentaram contornar isso fazendo sacrifícios em nome de convivência criativa. “One Hot Minute” (1995), único álbum lançado com o guitarrista, tem suas qualidades, mas demonstrou como esse arranjo não beneficiou ninguém. O fato do guitarrista e Kiedis ambos terem sofrido recaídas de heroína também não ajudou.
Em abril de 1998, a saída de Navarro foi anunciada. O Chili Peppers se via não apenas sem mais um guitarrista, mas também numa posição delicada. O grupo tinha quase 15 anos de carreira e o que parecia ser um estouro em “Blood Sugar Sex Magik” retrocedeu drasticamente em “One Hot Minute”.
Chegou ao ponto em que até mesmo Flea quis sair da banda. Numa reunião com Kiedis, ele baixou um ultimato: só continuaria parte do Red Hot Chili Peppers se John Frusciante voltasse para o grupo.
Por onde passou Frusciante nos seis anos desde que saiu? Pelo inferno.
Lázaro
Dizer que John Frusciante sofreu com vício é pouco. Os primeiros três anos após a saída do Red Hot Chili Peppers foram marcados por uma depressão profunda. O guitarrista não conseguia compor e acreditava que sua carreira havia acabado. Heroína se tornou uma automedicação ao invés de simples hedonismo, como ele contou à Spin em 2002:
“Quando decidi me tornar um viciado, foi uma decisão consciente. Eu estava muito triste, mas sempre estava feliz enquanto chapado; logo achei que devia estar drogado o tempo inteiro. Eu nunca senti culpa – sempre tive orgulho de ser viciado.”
Em 1993, o ator Johnny Depp e o vocalista do Butthole Surfers, Gibby Haynes, foram até a casa de Frusciante em Hollywood Hills com uma câmera. Lá eles filmaram o curta documentário “Stuff”. O nível de imundície da residência – que pegou fogo tempos depois – e a aparência fantasmagórica do guitarrista chamavam atenção.
Não demorou muito tempo para que Frusciante adicionasse cocaína à mistura. Por causa disso, o guitarrista teve um papel na morte de River Phoenix, irmão de Joaquin Phoenix, em 1993. Segundo o músico Bob Forrest, os dois amigos passaram os dias antes do ator falecer num ciclo de usar esse coquetel – coloquialmente chamado de “speedball”. A dose responsável por levar a óbito o astro de “Conta Comigo” veio do guitarrista, mas este poderia muito bem ter morrido junto.
No ano seguinte, Frusciante lançou seu primeiro álbum solo, “Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt”. O disco saiu pela American Recordings de Rick Rubin, produtor de “Blood Sugar Sex Magik”, convencido a dar um lar ao trabalho por amigos do músico desesperados com seu estado.
Em um perfil do New Times LA, o jornalista Robert Wilonsky descreveu o estado do músico em 1996:
“Seus dentes superiores praticamente não existem mais; foram substituídos por fiapos sujos que aparecem através de gengivas podres. Seus dentes inferiores, finos e marrons, parecem prestes a cair se ele tossir forte demais. Seus lábios estão pálidos e ressecados, cobertos com saliva tão espessa a ponto de parecer cola. Seu cabelo está raspado até o crânio; suas unhas, ou o espaço que elas costumavam ocupar, estão escurecidos por sangue parado. Seus pés e tornozelos e pernas são marcados por queimaduras de cinzas de cigarros Camel sem filtro que caem nele e não causam reação; sua carne também tem hematomas, cascas de ferida e cicatrizes. Ele usa uma camisa de flanela velha, abotoada pela metade, e calças cáqui. Gotas de sangue seco marcam as calças.”
Ao final de 1996, Frusciante parou de usar heroína. Entretanto, ele não conseguia se ver livre do seu vício em crack e álcool até janeiro de 1998, quando se internou em uma clínica de reabilitação. Lá foi diagnosticado com uma infecção oral grave, cujo tratamento envolveu arrancar todos seus dentes. Seus braços, cobertos de abscessos após anos de drogas injetáveis, precisaram de enxertos de pele.
Após um mês internado, o guitarrista recebeu alta da clínica. Ele estava sóbrio. Kiedis e Flea estavam há meses acompanhando a situação, até o visitando na reabilitação.
Em abril de 1998, o baixista foi até o apartamento novo de Frusciante e o perguntou se queria retornar à banda. Segundo Anthony Kiedis em “Scar Tissue”, John falou em meio a lágrimas:
“Nada no mundo me deixaria mais feliz.”
O Red Hot Chili Peppers tinha novamente seu guitarrista. Ele só não tinha uma guitarra, algo que Kiedis remediou ao lhe comprar uma Fender Stratocaster 1962, um presente por ter sobrevivido.
O vocalista também escreveu em sua autobiografia que as prioridades do grupo agora eram completamente diferentes — e mais semelhantes ao início de tudo:
“Não estávamos nem aí para fechar contratos para gravar, para o fato de que nosso produtor havia se demitido ou de que nossa gravadora perdera o interesse por nós. Nada importava. Só queríamos entrar numa garagem e tocar rock juntos.”
Cicatrizes contam histórias
Os trabalhos do que viria a ser “Californication” começaram na garagem de Flea. John Frusciante não tocava guitarra direito há anos, muito menos com uma banda. Anthony Kiedis estava ele próprio também se recuperando de um ano no qual passou por seu próprio processo de desintoxicação.
Foi nesse ambiente em que, curiosamente, as coisas começaram a fluir. Kiedis apresentou a Frusciante uma letra escrita durante uma viagem do vocalista à Tailândia, enquanto buscava a sobriedade. Imediatamente o guitarrista pensou haver uma canção ali. Após várias tentativas, um riff de guitarra melancólico agregou todos os elementos num só lugar.
A primeira colaboração entre os dois nessa nova fase viria a redefinir a sonoridade da banda: a faixa-título “Californication”. Enquanto no passado o Red Hot Chili Peppers eram marcados por sua energia desenfreada, eles viram coisas demais para não serem influenciados.
“One Hot Minute” já demonstrava uma guinada mais melancólica nas letras de Kiedis, mas a música não parecia estar certa. Com Frusciante, tudo parecia certo. Uma brincadeira do guitarrista no instrumento imediatamente inspirou o vocalista a compor “Scar Tissue”, uma canção que, apesar do nome, não lida muito com a jornada do grupo até ali.
Na realidade, o grito de sobrevivência do Red Hot Chili Peppers era “Otherside”. Em meio a uma das melhores melodias compostas por Frusciante, Kiedis imagina o ponto de vista daqueles que ficaram pelo caminho – Hillel Slovak, River Phoenix – e examina seu próprio comportamento autodestrutivo.
Estima-se que entre 30 a 40 canções foram compostas na garagem de Flea. O grupo reduziu o montante para as 15 faixas do álbum final antes mesmo de entrarem no estúdio. Após um vai e vem, decidiram trabalhar novamente com Rick Rubin. As gravações duraram apenas três semanas. Eles estavam voando.
Só restava a questão de como reapresentar o grupo, formado agora por homens com quase 40 anos — exceção feita a Frusciante, quase uma década mais novo que os colegas —, para uma nova geração. Adolescentes ao final dos anos 90 eram crianças pequenas na era “Blood Sugar Sex Magik”, a última vez em que o Red Hot parecia vital.
A solução foi criar uma presença online quando quase nenhum outro grupo do mesmo porte sequer considerava algo assim. Nada drástico, apenas um canal de conversa entre banda e público. Uma newsletter na qual Flea escrevia cartas abertas aos fãs. Ajudou a criar um elo.
Além disso, nos quatro dias antecedendo o lançamento do álbum, eles disponibilizavam três faixas por dia, gratuitamente, no seu site oficial. Em junho de 1999, um ano antes do Metallica declarar guerra ao Napster, cá estava o Red Hot Chili Peppers abraçando as possibilidades da internet.
Se isso tudo ajudou, é complicado saber. Entretanto, o mundo queria sim saber do Red Hot Chili Peppers. “Californication” estreou na terceira posição da Billboard 200, vendendo 189 mil cópias em seu primeiro mês. Uma marca melhor que a de seus dois álbuns anteriores, diga-se de passagem.
Ao todo, o álbum permaneceu 101 semanas na Billboard 200, ganhando sete discos de platina nos EUA. No Reino Unido, “Californication” chegou ao quinto lugar das paradas, permanecendo nelas por 169 semanas. Platina quádrupla na terra do rei Charles.
“Scar Tissue”, o primeiro single, passou 16 semanas no topo da parada Mainstream Rock da Billboard, e chegou ao nono lugar da Hot 100. “Otherside” também chegou ao Top 20. O clipe de “Californication”, inspirado na estética do game “Tony Hawk’s Pro Skater”, se tornou um clássico da MTV.
Há de se argumentar que a entrada do grupo no Rock and Roll Hall of Fame em 2012 se deve a essa volta triunfal. “Blood Sugar Sex Magik” pode ser considerado por muitos um álbum superior, mas ali eles ainda eram os caras que tocavam de cueca ou apareciam na capa da Rolling Stone com a genitália enfiada na meia.
Eles comeram o pão que o diabo amassou. Sobreviveram e, com “Californication”, chegaram a patamares nunca imaginados.
Red Hot Chili Peppers — “Californication”
- Lançado em 8 de junho de 1999 pela Warner Bros
- Produzido por Rick Rubin
Faixas:
- Around the World
- Parallel Universe
- Scar Tissue
- Otherside
- Get on Top
- Californication
- Easily
- Porcelain
- Emit Remmus
- I Like Dirt
- This Velvet Glove
- Savior
- Purple Stain
- Right on Time
- Road Trippin’
Músicos:
- Anthony Kiedis (voz)
- John Frusciante (guitarra, violão nas faixas 11 e 15, backing vocals, teclados)
- Flea (baixo, baixo acústico na faixa 15, backing vocals)
- Chad Smith (bateria, percussão)
Músicos adicionais:
- Greg Kurstin (teclados)
- Patrick Warren (órgão Chamberlin na faixa 15)
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