“Este é o melhor álbum que eu fiz desde ‘The Dark Side of the Moon’ (1973)!”. Essa fala de David Gilmour em comunicado à imprensa — ainda que posteriormente revista — certamente evidencia o entusiasmo do músico de 78 anos com “Luck and Strange”, seu quinto álbum solo, lançado nesta sexta-feira (6) — coincidentemente, aniversário de 81 anos de seu ex-colega de banda do Pink Floyd e atual desafeto, Roger Waters.
Em comparação com o aniversariante, Gilmour produz em menor escala — quase uma década se passou desde seu último trabalho, “Rattle That Lock” (2015), que alcançou o topo das paradas do Reino Unido. Ainda assim, é preciso estar atento ao que o músico lança.
Ainda mais quando traz exatamente o que se espera dele: a elegância de seu fraseado, envernizada por um dos timbres de guitarra mais reconhecidos e reconhecíveis do rock.
Músicos e familiares
Outro ingrediente é o teclado de Richard Wright, cuja participação na faixa-título foi extraída de uma jam session em 2007, um ano antes do falecimento do eterno tecladista do Pink Floyd. Mais colaboradores de longa data também emprestam seus talentos ao disco, como o baixista Guy Pratt, o baterista Steve Gadd e o tecladista Roger Eno, irmão do produtor Brian Eno.
Por último e definitivamente não menos importante, David envolve parte de sua família no processo, com destaque para sua filha Romany Gilmour, que assume os vocais em duas das 11 músicas do repertório.
No campo das letras, não é de hoje que David Gilmour delega essa função à esposa, Polly Samson, jornalista e escritora cuja única obra publicada no Brasil, o romance “Um Ato de Bondade”, foi lançada durante a miniturnê do marido pelo país em 2015. E ela brilha, à exceção de uma, assinada por David e seu filho Charlie.
David Gilmour e a mortalidade pós-pandêmica
Por ser um produto pós-pandêmico, “Luck and Strange” carrega em seu âmago muitas das reflexões sobre a mortalidade que permearam o pensamento daqueles que conseguiram se manter lúcidos durante o lockdown. Nesse sentido, é como se as letras resultassem de diálogos entre um casal cuja veia criativa parece ter pulsado com ainda mais vigor à luz (ou à falta dela, no caso) da incerteza do amanhã.
Aliás, esse não foi o único papel da pandemia na obra, já que foram as lives em família que despertaram em Gilmour a vontade de criar novamente. Criou tanto que “Luck and Strange”, segundo ele, não deve demorar a ter uma sequência.
“Luck and Strange” faixa a faixa
“Black Cat” é uma breve introdução instrumental de 1 minuto e 32 segundos, na qual já se ouve David Gilmour aquecendo os dedos sobre um tema de piano que evoca um sentimento de introspecção e a promessa de um mergulho em águas profundas.
A verdadeira partida é dada com a faixa homônima ao disco, cuja levada acena à Parte V de “Shine on You Crazy Diamond”, do Pink Floyd. Gilmour tempera seu solo com um lick surrupiado do country. O teclado de Wright é suave e constante, conforme evidenciado pela jam da qual foi extraído, disponível como uma faixa bônus.
É impossível ver o título “The Piper’s Call” e não pensar imediatamente em “The Piper at the Gates of Dawn” (1967), álbum de estreia do Pink Floyd. Com ares de novo século, a sonoridade em nada remete ao passado — até porque Gilmour sequer fazia parte do grupo na época do lançamento —, mas versos como “Your conscience uncontrolled / And beauty to behold / The promise of eternal youth / The spoils of fame, a carpe diem atitude” (“Sua consciência descontrolada / E beleza para contemplar / A promessa de eterna juventude / Os despojos da fama, uma atitude carpe diem”) parecem descrever a síndrome de Peter Pan da qual Syd Barrett, o vocalista original do PF, aparentemente sofria.
“Não existe ateu quando a barata é voadora” é uma interpretação possível da diferentona “A Single Spark”, uma suíte cuja primeira metade debate as conveniências (e ineficácias) da fé — o apego quase obsessivo quando em situações de vida ou morte (ex.: uma pandemia) — e em cuja segunda as notas da guitarra de Gilmour assumem o posto de única deidade necessária.
Quarenta e seis segundos é o tempo de duração do interlúdio “Vita Brevis”, a tradução musical do bom e velho “A vida é um sopro”; no caso, um sopro delineado por acordes arpejados e pedal steel.
A simplicidade do arranjo da releitura de “Between Two Points”, originalmente gravada pelo duo indie The Montgolfier Brothers, nos leva a prestar mais atenção à letra desiludida, que, na voz de Romany Gilmour, é perfeitamente compreensível para os fluentes em inglês. A visão negativa de si mesmo e do mundo, embora escrita por Mark Tranmer e Roger Quigley em 1999, espelha a verdadeira sequela de quem sofre da chamada “culpa do sobrevivente”. O afago aos mentalmente abalados aparece tanto no conselho “Laugh through the punches and the pain” (“Ria diante das adversidades e da dor”) quanto no cromatismo do solo.
“Dark and Velvet Nights” coloca “Luck and Strange” num caminho sinuoso entre o prazer da forma e o medo do conteúdo. São, de longe, os versos mais íntimos de Samson, adaptados de um poema da própria escritora, que aqui vislumbra o dia em que ou ela ou David partirão. “Will I hold your hand or you be left holding mine?” (“Será que eu vou segurar sua mão ou você ficará segurando a minha?”) é a pergunta que sintetiza a ideia de um “até que a morte nos separe” cada vez mais iminente.
A iminência do fim também é o pano de fundo temático de “Sings”. “Darling, turn back the clock / Give me time, make it stop” (“Querida, volte o relógio / Me dê tempo, faça-o parar”), suplica David Gilmour, querendo “só mais cinco minutinhos” ou, talvez, recusando-se a dizer adeus em definitivo, enquanto seus acordes se diluem em um teclado de ambiência.
Outro filho de David, Charlie, coassina a letra de “Scattered” com o pai. Ao cantar “Time is a tide that disobeys… disobeys me” (“O tempo é uma maré que desobedece… desobedece a mim”), ele expõe o que talvez seja a maior vulnerabilidade humana: sentir-se impotente para controlar a passagem do tempo, uma força imparável que, como a maré, avança independentemente dos desejos ou esforços do homem para retardá-la. Com 7 minutos e 33 segundos, é a faixa mais longa de “Luck and Strange”, contendo também o solo de guitarra mais emotivo e dilacerante do álbum.
Coincidência ou não, a segunda participação de Romany ocorre em outra canção de arranjo simples, protagonizada pelo violão: a derradeira, confessional e questionadora “Yes, I Have Ghosts”, disponibilizada como single ainda em 2020. No refrão final, quando pai e filha cantam que “nem todos os fantasmas estão mortos”, fica a sensação de que a pergunta “Where is the sweet soul that you used to be?” (“Onde está a doce alma que você costumava ser?”) não tem outro destinatário além de Roger Waters.
Profunda jornada pessoal
Nas escutas posteriores, fica ainda mais evidente que “Luck and Strange” simboliza uma profunda jornada pessoal de David Gilmour, marcada por reflexões sobre a mortalidade, a passagem do tempo e as relações humanas.
A presença de sua esposa Polly e sua filha Romany, além da memória viva de Richard Wright, confere uma camada íntima e familiar ao projeto. Mais que apenas um apanhado de canções, é quase uma meditação sonora sobre os ciclos da vida.
O músico não apenas revisita sonoridades e temas outrora típicos do Pink Floyd — vide a clássica “Time” —, mas também propõe uma nova abordagem, condizente com sua própria maturidade artística.
Com uma habilidade inigualável de traduzir emoções profundas em solos de guitarra melódicos e atmosferas etéreas, Gilmour demonstra novamente porque é um dos músicos mais reverenciados do rock. E “Luck and Strange” é seu mais novo lembrete de que certas músicas a gente ouve com a alma.
*Ouça “Luck and Strange” a seguir, via Spotify, ou clique aqui para conferir em outras plataformas digitais.
*O álbum está na playlist de lançamentos do site, atualizada semanalmente com as melhores novidades do rock e metal. Siga e dê o play!
David Gilmour — “Luck and Strange”
- Black Cat
- Luck and Strange
- The Piper’s Call
- A Single Spark
- Vita Brevis
- Between Two Points (cover de Montgolfier Brothers)
- Dark and Velvet Nights
- Sings
- Scattered
Faixas bônus da edição em CD:
- Yes, I Have Ghosts
- Luck and Strange (original barn jam)
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Parabéns pelas tuas resenhas, em especial, por essa do novo disco do Gilmour. Apesar das nossas divergências ideológicas ainda temos a mesma formação biológica, ou seja somos humanos….
Excelente matéria! David Gilmour é o melhor de todos os tempos.