Quando se trata de apresentações em grandes estádios, sobretudo nos dias atuais, com vasto aparato tecnológico à disposição e uma indústria musical cada vez mais “visual”, é comum ver artistas, novos ou lendários, gastando o conceito de mise-en-scène. Em nome do espetáculo ou do que o mercado e os mais jovens chamam de “experiência”. Esse, no entanto, definitivamente não é o caso de Eric Clapton.
Apesar da diversificada obra e de ter feito afagos a gêneros distintos ao longo das seis décadas de carreira, Clapton ainda é, na essência, um purista do blues. E não será agora, do alto de seus 79 anos, que ele estará disposto a abrir concessão.
Alheio a pirotecnias visuais, seu show revela-se “parnasiano”. É a arte pela arte. Neste caso, a música pela música, com fim em si mesmo. Sem cenografia, pano de fundo, tampouco imagens de época e texturas psicodélicas no telão. É a banda, e somente ela, que fala. Conduzida pelas mãos suaves (“slowhand”) de um mestre da guitarra e sua devoção aos que vieram antes – Robert Johnson, Willie Dixon, Bo Diddley etc.
Nada disso, porém, impede Clapton de emocionar um estádio inteiro. Foi assim na Ligga Arena (antiga Arena da Baixada), em Curitiba, na primeira (terça-feira, 24/9) das quatro datas da nova turnê pelo Brasil. Uma noite quente, tanto pela temperatura elevada para os padrões da capital paranaense como pelas emoções afloradas.
Com direito a uma canção nova, solidariedade à Palestina e o talento do texano Gary Clark Jr. no ato de abertura (e no bis), Clapton começou em grande estilo esta que é sua quarta passagem pelo país – antes, veio em 1990, 2001 e 2011.
Talento em lapidação
Quem acompanha o circuito do blues rock e do soul, sabe que Gary Clark Jr. é um dos nomes mais proeminentes há pelo menos uma década. Não é de hoje que o guitarrista nascido em Austin, no Texas (EUA), impressiona pela versatilidade, inclusive flertando com o hip hop e outros estilos recentes em vários momentos.
O próprio Eric Clapton é um entusiasta e, por vezes, levou consigo o “pupilo”, agora já com 40 anos, em turnês de sucesso ao redor do mundo. Foi assim na passagem do britânico pelo Brasil em 2011 e está sendo novamente agora.
Nesse intervalo de tempo, Gary Clark abraçou novas influências e atualmente tem um estilo bem menos “blueseiro”, por assim dizer. Isso fica claro desde sua vestimenta até o início de seu show, com a ritualística “Maktub”, repleta de climas e texturas. Ela abre também seu novo álbum de estúdio, “JPEG Raw” (2024).
O guitarrista só tem a ganhar com essa abordagem mais espiritual, só que, ao vivo, o repertório ainda não parece totalmente azeitado. “This Is Who We Are”, por exemplo, soa dispersa e promete mais do que entrega. Em outras partes da apresentação de uma hora, há certo exagero ao deixar os solos muito na cara e a bateria quase inaudível. Detalhes, claro, que não comprometem o todo.
Os pontos altos ficam com “When My Train Pulls In”, “Bright Lights” (sua canção mais conhecida pelo público brasileiro) e o cover para “What About the Children”, de Stevie Wonder, em que Gary demonstra que seus dotes não se restrigem à guitarra. Nela e no belo encerramento com “Habits”, o músico dá aula de interpretação vocal, com timbres mais suaves e macios.
Repertório – Gary Clark Jr.
- Maktub
- Don’t Owe You a Thing
- When My Train Pulls In
- This Is Who We Are
- What About the Children (cover de Stevie Wonder)
- Bright Lights
- Habits
A música pela música
Assim como Gary Clark Jr. (19h20), Eric Clapton fez jus à pontualidade britânica. Às 21h, subiu ao palco acompanhado de uma banda afiadíssima e que logo demonstrou seus predicados em “Sunshine of Your Love”, do Cream.
Ela e “Badge”, curiosamente uma música de um disco “póstumo” do power trio britânico — “Goodbye” (1968) —, foram as responsáveis por contemplar os tempos de Clapton ao lado dos finados Jack Bruce (baixo/vocal) e Ginger Baker (bateria).
E ambas foram muito bem executadas, com destaque para o vozeirão do baixista Nathan East segurando a bronca em “Sunshine of Your Love” e a beleza simbólica de Clapton dando uma pausa para respirar e se encher de inspiração antes de atacar com o clímax de “Badge”. De arrepiar os milhares de presentes na arena.
“Key to the Highway” e “I’m Your Hoochie Coochie Man” completaram a primeira porção elétrica do show, que foi marcado por uma qualidade sonora impecável, mas também por calor, sobretudo em frente ao palco, onde havia maior concentração de pessoas. Ambos os aspectos (um bônus e um ônus) sendo, provavelmente, cortesia do teto retrátil da Ligga Arena, que permaneceu fechado.
O miolo acústico do show ofereceu algumas surpresas. Como na sexta-feira (20), em Buenos Aires, Clapton voltou a executar “The Call”, música que estará em seu próximo disco, “Meanwhile”. Ele não anunciou o nome antes de começá-la e manteve certo ar de mistério, mas, de fato, tocou a nova canção que estreou na Argentina.
“Lonely Stranger” e “Believe in Life” até constavam no setlist inicial obtido pela reportagem, mas foram limadas. Coube à dobradinha formada por “Running on Faith” e “Tears in Heaven” fazer a felicidade de todos aqueles que conheceram a obra de Clapton via “Unplugged” (1992), disco ao vivo mais vendido da história.
Como já era esperado, clássicos como “Layla”, “Wonderful Tonight” e “Bell Bottom Blues” — com referências explícitas a Pattie Boyd, ex-esposa e grande paixão de Clapton nos anos 1970 —, não foram executados. Fica claro que o músico prefere virar essa página de amor não correspondido (antes) e triângulo amoroso (depois) vivido com Pattie e George Harrison, seu melhor amigo na época.
O segundo bloco elétrico, portanto, retoma homenagens a hinos do blues (“Cross Road Blues”, “Little Queen of Spades”) e chega ao ápice com “Cocaine”. Não sem antes “Old Love” roubar a cena, com uma inspiradíssima sessão instrumental no fim e o solo mais dilacerante de Clapton em todo o show.
Durante 1 hora e 40 minutos de apresentação, o fundo do palco permanece escuro. Quem brilha são os músicos, atraindo os holofotes com uma desenvoltura que privilegia a música, não o espetáculo. Não há truques de encenação, apenas a química quase sobrenatural de quem toca junto há décadas – o tecladista Chris Stainton, por exemplo, está com Clapton desde 1979. Impossível não mencionar também Tim Carmon, que se juntou à trupe nos anos 1990. Ele e seu órgão Hammond são vitais na engrenagem e, por vezes, assumem o protagonismo com solos memoráveis.
Numa das raras vezes em que abandona os preceitos do parnasianismo e a busca pela perfeição formal, permitindo-se expressar politicamente, Clapton volta para o bis empunhando a guitarra com a bandeira da Palestina em “Before You Accuse Me”. Um aceno de solidariedade muito bem-vindo da parte de quem já proferiu algumas barbaridades, nos primórdios (procure pelo “caso Enoch Powell” ou clique aqui) e num passado bastante recente (negacionismo científico durante a pandemia).
Gary Clark Jr. também se junta à banda no bis, numa batalha de solos que proporciona o desfecho magistral do show, honrando o legado de Bo Diddley e materializando bem na nossa frente o processo de transmutação do blues em rock. Com um ícone da velha e um prodígio da nova geração. Afinal, música boa não tem prazo de validade.
*A atual turnê de Eric Clapton pelo Brasil ainda passa por Rio de Janeiro (Farmasi Arena, 26/9) e São Paulo (Vibra, 28/9, e Allianz Parque, 29/9).
Eric Clapton – ao vivo em Curitiba
- Local: Ligga Arena
- Data: 24 de setembro de 2024
- Turnê: The Americas Tour
- Produção: Move Concerts
Repertório:
Elétrico
- Sunshine of Your Love
- Key to the Highway (cover de Charles Segar)
- I’m Your Hoochie Coochie Man (cover de Willie Dixon)
- Badge
Acústico
- Kind Hearted Woman (cover de Robert Johnson)
- Running on Faith
- Change the World (cover de Wynonna Judd)
- The Call
- Nobody Knows You When You’re Down and Out (cover de Jimmy Cox)
- Tears in Heaven
Elétrico
- Pretending
- Old Love
- Cross Road Blues (cover de Robert Johnson)
- Little Queen of Spades (cover de Robert Johnson)
- Cocaine (cover de J.J. Cale)
Bis
- Before You Accuse Me (cover de Bo Diddley)
Banda:
- Nathan East (baixo/vocais)
- Doyle Bramhall II (guitarra/vocais)
- Sonny Emory (bateria)
- Chris Stainton (teclados)
- Tim Carmon (Hammond/teclados)
- Sharon White (backing vocals)
- Katie Kissoon (backing vocals)
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Eu não gostei desta resenha,eu amei! É incrível como o autor conseguiu traduzir em palavras tudo o que eu senti neste show maravilhoso e histórico .E isso tudo num texto informativo,na medida,sem pedantismo,sem clichês.Fez eu me emocionar com o show de novo.Sem dúvida a melhor resenha deste show,na minha humilde opinião e identificação total com o autor.Muito obrigada !