Por décadas, Eric Clapton reinou, ao menos entre os brasileiros fãs de rock, como virtual unanimidade. Afinal de contas, ele era o cara do Yardbirds, do Cream e que depois teve a fama reaquecida na onda dos acústicos da MTV com “Tears in Heaven” em “Unplugged” (1992), veiculada a dar com pau por aqui. O estouro, aliás, despertou a comoção em quem ainda desconhecia a estória por trás da composição escrita sobre a perda de seu filho, Conor, aos quatro anos, num terrível acidente em 1991.
Oficialmente de seus tempos de Derek and the Dominos, “Layla” também foi outro de seus sucessos e, soltando três spoilers, o cara se deu ao luxo de abrir mão dela, “Lay Down Sally” e “Wonderful Tonight” durante seu show de sábado (28) no Vibra São Paulo, data mais intimista antecedendo uma performance no Allianz Parque, neste domingo (29). E quem pesquisava sua biografia mais a fundo sabia da mensagem implícita na letra inspirada em sua paixão por Pattie Boyd, então esposa de George Harrison, tema abordado aqui no site. Se, por um lado, o triângulo amoroso podia ser considerado um escândalo à época, por outro, tratava-se de um prato cheio para quem adora uma fofoca.
O caldo entornou de vez durante a pandemia quando o renomado músico adotou postura negacionista e amigos deixaram-no de lado, chegando ao ponto de gravar “Stand and Deliver”, de conteúdo anti-lockdown, e culminando em acusações de sua parte contra a revista Rolling Stone por difamação.
Nada disso importou para os fãs paulistanos, que esgotaram ingressos para a apresentação no Allianz Parque, marcada primeiro, e para esta data extra aqui resenhada, ambas com o suporte de luxo de Gary Clark Jr. como “special guest” — pois vê-lo como mera atração de abertura seria fazer pouco caso dele. Em tempo, a parceria nem era inédita por aqui, pois Clapton já o trouxera debaixo de suas asas ao Brasil para datas em outubro de 2011, passando por São Paulo.
Gary Clark Jr
Por falar no promissor americano, sua apresentação se iniciou às 19h20, dez minutos antes do divulgado em e-mail oficial da produção e, infelizmente, para um público relativamente pequeno quando ele veio ao palco com “Maktub”, experimental para quem esperava blues de imediato e que também abre “Jpeg Raw” (2024), trabalho recém-disponibilizado em março. Como se a faixa já não fosse menos óbvia e deliciosamente pautada na guitarra (e, ao vivo, inicialmente na bateria), Gary caprichou em seu solo!
O gênero musical tão aguardado para a noite, autêntico berço de tudo de bom que ouvimos no rock, surgiu mesmo em “Don’t Owe You a Thang”, embora um tanto acelerada e robusta demais para os puristas. E para quem assistira ao guitarrista no Morumbi treze anos atrás e tornava a vê-lo apenas agora, quanta diferença! Então com vinte e sete anos, ele tinha muito a maturar. Hoje, é um músico bem mais seguro de si, provando a tese defendida pelo eterno Nelson Rodrigues, saudoso escritor e jornalista, quando aconselhava aos jovens: “Envelheçam!”.
Não que estas duas amostras estivessem ruins, muito pelo contrário, mas a apresentação engatou de fato a partir de “When My Train Pulls Back In”, talvez por ser mais “velha”, de “Blak and Blue” (2012) – sabemos que a anterior é ainda mais antiga –, ou por ser um pouco mais acessível para os casais, em número superior ao esperado por este escriba. O fato foi que a quase balada: foi imediatamente reconhecida; ao vivo, possui ainda mais feeling do que em estúdio, além de ter sido estendida; veio num crescendo até explosão final; e a quantidade de celulares erguidos para o registro do momento foi gradativamente se elevando.
Com um pé na soul music, “Feed the Babies” trouxe um belo experimento que deu certo: cantar em falsete. E a esta altura tornava-se evidente: se você só conhece Gary Clark Jr. por seus discos, precisa urgentemente conferi-lo num palco, onde transforma o que já é bom em versões anabolizadas e repletas de sentimento. Ainda mais acompanhado dos competentíssimos: Elijah Ford (baixo), JJ Johnson (bateria), suas três irmãs, Shawn, Savannah e Shanan (vocais de apoio), Dayne Reliford (teclados) e King Zapata (guitarra), na ordem em que ele mesmo os apresentou.
Enquanto notávamos o público na pista dar uma bela encorpada, suas três vocalistas, que também davam uma leve força na percussão, deixavam o palco para “Bright Lights”. Nesta, Gary tornou explícito seu talento como cantor e intérprete, sendo bastante aplaudido ao final. E o último verso da letra mostrava o quanto ele estava correto ao escrevê-la: “Hey! You gonna know my name by the end of the night, well” (“Ei, você saberá meu nome no fim da noite”).
Com Shawn, Savannah e Shanan de volta, a saideira foi “Habits” e é impressão deste repórter ou seu final tem mesmo um quê de Ben Harper? Resumindo, o set de uma hora balanceou sua discografia em apenas seis músicas: duas do citado “Jpeg Raw” e do EP “The Bright Lights” (2011); e uma do mencionado “Blak and Blu” e de “This Land” (2019). No final, não se sabia se celebrávamos a chance de poder vê-lo tocar vindo com o “padrinho” Eric Clapton ou se lamentamos por seu set ter sido reduzido em função de ter que abrir a noite.
Gary Clark Jr. – repertório:
Intro: Turn It Up Give It Shrooms [Stro Elliot]
01) Maktub
02) Don’t Owe You A Thang
03) When My Train Pulls In
04 Feed The Babies
05) Bright Lights
06) Habits
Eric Clapton
O intervalo de aproximados quarenta minutos passou rapidamente para quem estava acompanhado, namorando ou batendo papo, ou concentrado na playlist predominantemente focada nos Beatles. Às 20h35, notamos um aviso nos telões laterais: “Atenção – Não haverá serviço nos bares localizados na pista durante o show do Eric Clapton. Para sua comodidade, os bares localizados no foyer (hall de entrada da casa) continuarão o serviço normalmente”. Do latim: “Quem quisesse tomar uma tinha que comprar antes ou perderia parte do show”. Na prática, quem não bebia certamente agradeceria pela diminuição da movimentação de pessoas em breve.
A decoração tanto consistia no que pareciam ser sete postes antigos de iluminação, porém, com tudo apagado e de longe, um engraçadinho comentou que lembravam sete chuveiros… Um minuto antes do programado para as 21h, baixaram-se as luzes da casa, acenderam-se as do palco e “Sunshine of Your Love” inaugurou a festa para uma plateia nem tanto afiada nas estrofes, mas sim no refrão. Para a comoção geral, bastou um solo de Eric Clapton e o ingresso estava pago… Ao lado deste repórter, um senhor dizia à sua senhora: “Nossa, quantas vezes ouvimos esta música!”.
Ela não foi a única do Cream, pois, pouco adiante, curiosamente escrita em parceira justamente com George Harrison (veja só como é a vida!), “Badge” concluiria a primeira parte elétrica, que incluiu: “Key to the Highway”, num autêntico clima de saloon de filmes antigos e cujo contraste do som do órgão com o do piano justificava a escolha em trazer dois músicos distintos para as funções; e “I’m Your Hoochie Coochie Man”, simplesmente um espetáculo à parte. Viva e vida longa ao blues!
Vinte e cinco minutos elétricos e eletrizantes, mas esperar movimentação de palco seria demais. Afinal de contas, era noite para mexer cabeça e pés e sentir a vibe no coração e no cérebro, especialmente pela qualidade do som, ouvindo-se todos os instrumentos e vozes, e volume, nem ensurdecedor e nem inaudível, para um total de cinco mil e quatrocentas pessoas.
Set acústico
Com rápidos ajustes, todos devidamente acomodados (leia-se: “sentados”), não seria exagero afirmar que baixara Robert Johnson em Eric Clapton para “Kind Hearted Woman Blues”. Ao violão, a atmosfera com luzes mais cerradas se evidenciava para o público petrificado! Um sutil “obrigado!” de Clapton deixou claro que também não era para se esperar longas falas, causos sobre a carreira, estórias a respeito de onde viera a ideia para tal letra ou como certa música havia sido composta. E para dinamizar o processo, intervalos bem curtos entre canções.
Após “Running on Faith”, a linda “Change The World” veio em versão levemente mais rápida e animada do que a encontrada na trilha sonora no filme “Fenômeno” (1996), sem descaracterizá-la, e o “Obrigado” de outrora foi promovido a um “Muito obrigado!”. Outra em clima de saloon, na ótima “Nobody Knows You When You’re Down And Out”, reparamos num ponto: por que o povo só canta alto o refrão e o título?
Em sua interação mais elaborada de todo o evento, durando exatos e cronometrados nove segundos, o inglês anunciou: “Gostaria de convidar um amigo meu para tocar algumas músicas agora. Por favor, dêem as boas vindas ao sr. Daniel Santiago”. E o brasileiro mandou super bem em “Lonely Stranger”, “Believe in Life” (com um quê de bossa nova e inovando no setlist em relação aos shows de Curitiba e Rio de Janeiro) e a tão maravilhosa quanto obrigatória “Tears in Heaven”, aí sim para um mar de celulares erguidos, comentários como “Esta é a melhor!” e sentimentos aflorados.
Durante sua execução, este redator, que ousa cravar jamais superar a hipotética perda de um filho ou filha, se perguntava como seria possível alguém tocá-la em praticamente todos seus shows atualmente tendo vivido o trauma… Seria ainda uma ferida aberta em eterna busca pela terapêutica cura musical ou estaria cicatrizada? O ocorrido foi que ela marcou a despedida do brasileiro e o encerramento do set acústico de super bom gosto.
Elétrico novamente
Curto rearranjo e, “replugados”, o time completado por Doyle Bramhall II (guitarra/vocais), Nathan East (baixo/vocais), Chris Stainton (teclados), Tim Carmon (Hammond/teclados), Sonny Emory (bateria) e Sharon White e Katie Kissoon (vocais de apoio) se saiu com “Got to Get Better in a Little While”. A música foi incluída na Farmasi Arena na quinta-feira (26), mas não na Ligga Arena na terça (24) – por lá haviam rolado “Pretending” e a inédita “The Call”.
Ainda na faixa lançada em versões “ao vivo”, “jam” e “new mix” em 2011 em comemoração do quadragésimo aniversário do único play do Derek and the Dominos, veio um curto solo de Sonny Emory, porém com todos no palco, até a belíssima “Old Love” trazer com tremendo solo de Tim Carmon e apresentar um trecho bem reggae.
“Cross Road Blues” ofereceu breve citação a “Eleanor Rigby”, dos Beatles, e tempo e espaço para que tanto Chris Stainton quanto Tim Carmon tivessem seus momentos de brilho. Caminhando para a conclusão da parte regular do repertório, “Little Queen of Spades” foi o terceiro e último resgate de material originalmente gravado por Robert Johnson (bem como a anterior e “Kind Hearted Woman Blues”). Se você tiver juízo e aceitar uma dica, ouça “Me and Mr. Johnson” (2004), décimo quinto disco solo de Eric Clapton, apenas com releituras de “Mr. Johnson”, conforme indicado.
Com intro ao melhor estilo bossa nova, “Cocaine” deu voz ao baixo de Nathan East, representou êxtase coletivo com seu título berrado e houve quem acusasse o golpe e começasse a deixar as dependências da casa antes do bis: “Before You Accuse Me”, com Gary Clark Jr. na guitarra e Daniel Santiago no violão.
A única questão nesta parte foi que, na hora de o brasileiro fazer seu fraseado, por se tratar de um instrumento acústico, a banda toda baixou seu volume, mais do que feito para Gary e Clapton, por exemplo. E antes de você acusá-lo de alguma coisa, com o perdão do trocadilho com a canção, saiba que o inglês usou uma guitarra com bandeira da Palestina na volta ao palco. Seria uma tentativa de se redimir de seus posicionamentos?
Se incluirmos na conta a “outro”, “Pink Panther Theme”, de Henri Mancini e eternamente divertida graças ao desenho animado, o relógio bateu em uma hora e cinquenta e quatro minutos de lavar a alma. Provou-se que é muito melhor levarmos em conta o que Eric Clapton faz ao vivo, ainda capaz de proporcionar alegria com seu instrumento e cantando, e que talvez devamos deixar de lado as polêmicas envolvendo um senhor de setenta e nove anos que, neste estágio da vida, tem direito às suas patacoadas ocasionais. E se for para meter os pés pelas mãos, que seja na guitarra, não?
Nem é questão de “passar o pano”, para ficarmos numa expressão da moda, pois talvez esta tenha sido uma das últimas oportunidades de vê-lo pelo Brasil — a derradeira pode ser no mesmo estádio do Palmeiras onde, até o vigente momento, despediram-se Kiss, Aerosmith e Ozzy Osbourne. Mas não é para se dar um desconto? O cara teve a humildade de convidar um músico nacional que segurou bem a onda em três músicas, mesmo não sendo tão conhecido do grande público.
Se for para se irritar, deixe Eric Clapton falando sozinho, pegue um álbum dele para escutar e pronto. Vida que segue.
Eric Clapton — ao vivo em São Paulo
- Local: Vibra
- Data: 28 de setembro de 2024
- Turnê: The Americas Tour
- Produção: Move Concerts
- Tempo: 1h54min / Divulgado: 21:00 / Real: 20:59 – 22:54
Repertório:
Parte 1 – Elétrico – 25min
01) Sunshine Of Your Love [Cream]
02) Key To The Highway [Charles Segar]
03) I’m Your Hoochie Coochie Man [Willie Dixon]
04) Badge [Cream]
Parte 2 – Acústico – 29min
05) Kind Hearted Woman Blues [Robert Johnson]
06) Running On Faith
07) Change The World [Wynonna Judd]
08) Nobody Knows You When You’re Down And Out [Jimmy Cox]
09) Lonely Stranger [Com Daniel Santiago]
10) Believe In Life [Com Daniel Santiago]
11) Tears in Heaven [Com Daniel Santiago]
Parte 3 – Re-plugado – 60’
12) Got To Get Better In A Little While [Derek And The Dominos]
13) Old Love
14) Cross Road Blues [Robert Johnson]
15) Little Queen Of Spades [Robert Johnson]
16) Cocaine [J. J. Cale] [Com Intro Bossa Nova]
Bis
17) Before You Accuse Me [Bo Diddley] [Com Gary Clark Jr. & Daniel Santiago]
Outro: Pink Panther Theme [Henri Mancini]
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