Impressiona que os pontos cruciais da história do Sepultura estejam relacionados à morte. Do início — ou melhor, antes mesmo do início — até o previsto fim.
Em 1979, quase meia década antes de a banda ter sido fundada, Max e Iggor Cavalera perderam o pai. Aos 40 anos de idade, Graziano Cavalera sofreu um infarto dentro de um carro onde também estavam os dois garotos, junto de um primo deles. Estavam prestes a seguir viagem à represa de Guarapiranga, a aproximadamente 40 km do centro de São Paulo.
Viúva, a mãe dos futuros músicos, Vania Cavalera, decidiu voltar para Minas Gerais. Ela “saiu fugida” da casa dos pais, de Belo Horizonte, para tentar a vida como modelo na capital paulista e no Rio de Janeiro. Nem deu tempo de consolidar uma carreira.
Sem Graziano e com o retorno à terra natal, os jovens Max e Iggor precisaram trabalhar desde cedo. O heavy metal se tornou um refúgio e, com o tempo, estilo de vida; a ponto de largarem os estudos, com autorização e apoio da mãe, para investirem tempo em uma ainda incipiente carreira musical. Com Graziano, talvez nunca fundassem o Sepultura — ou talvez não virasse o que virou e muito provavelmente sequer seria criado em BH.
A associação à morte continua pelo próprio nome da banda. O sinônimo de “cova” surgiu sob inspiração do título da música “Dancing On Your Grave” (“Dançando em sua sepultura”) lançada pelo Motörhead no álbum “Another Perfect Day” (1983). Canções compostas ao longo da trajetória mencionaram a perda da vida de formas diversas.
Até o presente momento, nenhum integrante do Sepultura faleceu. Todavia, duas mortes ocorridas já durante a existência da banda também causaram impacto. A primeira se deu em novembro de 1996. Dana Wells, enteado de Max e filho de sua esposa, a também empresária do grupo, Gloria Cavalera, veio a óbito aos 21 anos. A polícia de Phoenix determinou que o falecimento ocorreu por conta de ferimentos em um acidente automobilístico. A família acredita que ele foi assassinado.
Em entrevistas, Max afirma que o enterro de Dana foi apressado para que o grupo, à época no topo do mundo com seu álbum “Roots” (1996), retomasse os compromissos em turnê. Isso e a não renovação do contrato de Gloria serviram como estopins para sua saída. Derrick Green foi trazido para sua vaga e permanece na formação até hoje.
A segunda morte, em julho de 2022, foi a de Patrícia Kisser, esposa de Andreas Kisser, guitarrista que assumiu a liderança criativa da banda após o rompimento com Max, ocorrido uma década antes de Iggor também deixar o grupo. A perda de sua cônjuge por um câncer agressivo serviu como motivo primordial para o músico convencer os colegas a dar fim ao principal nome da história do heavy metal brasileiro. Sim, o Sepultura vai acabar, no máximo até o fim de 2025. Não sem antes dizer “adeus”.
Da escolha do nome ao comunicado oficial, a turnê de despedida “Celebrating Life Through Death” (“Celebrando a vida através da morte”) busca tratar a finitude com naturalidade — como deveria ser. De forma complementar em entrevistas, Kisser tem defendido o direito à eutanásia e apontado como a sociedade, especialmente brasileira, não sabe como lidar com a morte. É tema proibido em conversas na maior parte dos lares. Ignorância, neste caso, não é uma bênção: tal comportamento ajuda a gerar ainda mais tristeza quando uma perda ocorre.
Transformar a finitude em celebração é, na verdade, o comportamento que se espera de uma banda que, talvez, só tenha existido por conta de uma morte. Que ganhou seu nome em referência a isso. E cujos dois momentos mais impactantes — a saída de Max e o próprio anúncio do fim — tenham ocorrido em função disso.
Apesar do atraso…
O Sepultura levou seis meses, desde o início da tour, para chegar a São Paulo. Quase vinte cidades do Brasil, além da Coreia do Sul e outros países da América Latina, assistiram à “Celebrating Life Through Death” antes da maior cidade do hemisfério sul, cujo público não se fez de rogado e esgotou logo três noites no Espaço Unimed — sexta-feira (6), sábado (7) e domingo (8). Como a pista premium tinha também configuração open bar — com grades que ocupavam um espaço adicional —, não dá para cravar que foram vendidos 8 mil ingressos, capacidade máxima da casa, para cada data. Mas chegou perto.
Este que vos escreve, infelizmente, não chegou a tempo de assistir à apresentação de abertura da sexta, com o sempre competente Torture Squad — Cultura Tres inicia os trabalhos no sábado (7) e Black Pantera, no domingo (8). Mas já estava no local antes das 20h30, pois, oficialmente, o show principal começaria às 21h.
Não foi o que ocorreu. Em quase todas as cidades por onde tem passado, o Sepultura tem procrastinado 30 minutos contados para subir ao palco. Funerais nem sempre são pontuais, mas o tal do “atraso combinado” precisa acabar.
Ainda que delongas não sejam recomendadas, não dá para negar que, em algumas situações, parecem elevar a expectativa do público — que já cantava a plenos pulmões, junto ao som mecânico, “War Pigs” (Black Sabbath) e “Polícia” (Titãs) antes de Derrick Green, Andreas Kisser, o baixista Paulo Xisto Jr e o baterista Greyson Nekrutman subirem ao palco.
Da catarse à contemplação
Assisti a alguns shows do Sepultura ao longo da vida. Este, provavelmente, foi o mais longo: exatamente duas horas de duração, com poucos intervalos para respiro. Ao todo, foram tocadas 25 músicas, percorrendo quase todos os álbuns da discografia — somente “Nation” (2001), “A-Lex” (2009) e “The Mediator Between Head and Hands Must Be the Heart” (2013) não foram representados.
Veio de “Chaos A.D.” (1993) a bem bolada trinca de abertura com “Refuse/Resist”, “Territory” e “Propaganda”. A partir daí, o quarteto mostrou sabedoria ao mesclar pancadaria, groove e contemplação em seu repertório. “Phantom Self”, apesar dos violinos pré-gravados pouco audíveis, é do tipo que se aprecia mais do que se bate cabeça. “Dusted” e “Attitude”, ambas de “Roots” (1996), privilegiam o ritmo forte — e os deliciosos timbres obesos da guitarra de Kisser —, enquanto “Spit” e “Kairos” são mais intensas.
Em seu miolo, o setlist seguiu “brincando” com esses três tipos diferentes de momentos. Das contemplativas, destacaram-se a incrível “Guardians of Earth”, com direito a solo de violão na intro, e “Agony of Defeat”, que representa, ao lado de “Fear, Pain, Chaos, Suffering”, o mais próximo de uma balada que o Sepultura fez até hoje. Entre as que priorizam o ritmo, são dignas de menção as injustiçadas “Choke” e “Mind War”, esta última com linhas vocais difíceis de se reproduzir ao vivo, mas muito bem executadas por Green. Já do bate-cabeça, “Convicted in Life” exalou poder, enquanto o breakdown de “Dead Embryonic Cells” teve até fã nos ombros de outro fã em meio a uma enorme roda de mosh. Quase poético.
Em momento à parte, a instrumental “Kaiowas” trouxe uma série de convidados para o palco. Primeiro, um violão nas mãos de Jean Patton, ex-guitarrista do Project46 que chegou a substituir Kisser durante shows em 2022 enquanto este acompanhava Patrícia em seus momentos finais. Depois, na parte mais percussiva, virou festa: entraram músicos do Torture Squad, fãs, membros da equipe técnica, Yohan Kisser (filho de Andreas) e até João Barone, integrante d’Os Paralamas do Sucesso e um dos maiores bateristas da história do rock brasileiro.
Estouro e considerações finais
Apenas clássicos irrevogáveis compuseram a seção final do repertório. Uma versão encurtada de “Orgasmatron” (Motörhead), que já havia aparecido no show do Rio de Janeiro uma semana antes, antecedeu a trinca retrô “Troops of Doom”, “Inner Self” e “Arise”, responsável por concluir o set regular. No bis, “Ratamahatta” — com as cores do Brasil na iluminação e nos telões — e “Roots Bloody Roots” não deixaram pedra sobre pedra. A sensação de “final feliz” da noite é complementada com um quase-deboche: “Easy Lover”, de Phil Collins, toca no som mecânico.
Entre a já citada “Kairos” e “Means to an End”, Andreas Kisser chegou a brincar que o público da sexta-feira (6) era o mais f#da das três noites, pois foram os primeiros a esgotar ingressos — os shows de sábado (7) e domingo (8) foram anunciados posteriormente, na ordem mencionada. Quem esteve ali presente, de fato, “jogou junto” com a banda, seja nas rodas que se criavam em vários espaços da pista — especialmente a comum —, seja por cantar junto a Derrick Green até mesmo músicas que não se tornaram clássicas.
Engrandecidos por uma produção que faz jus à grandeza da banda — com direito a dois quadrados com telões nas laterais do palco e animações exibidas em todas as canções —, os integrantes desfilaram a competência que já é conhecida. A saber:
- Derrick Green é uma máquina: no alto de seus 53 anos de idade, o maratonista da música extrema canta tudo sem perder o fôlego, sem bater na trave e sem deixar de pular;
- Andreas Kisser, que ajuda a conduzir o público quase como um cofrontman, tem estado na última década cada vez mais seguro como único guitarrista;
- Ainda que discreto, Paulo Jr é essencial para o pesadíssimo caldeirão sonoro, a ponto de não existir Sepultura sem ele;
- E embora não tenha o poder de fogo de seu antecessor nem o timbre mais adequado de bateria, Greyson Nekrutman é habilidoso o bastante para honrar o posto que um dia foi de Iggor Cavalera e Eloy Casagrande, dois dos maiores bateristas da história do heavy metal mundial.
A morte anunciada do Sepultura ainda vai fazer muito barulho. Fora a turnê, há planos de se lançar um álbum ao vivo e um EP de canções inéditas. Além das outras duas datas neste fim de semana, São Paulo receberá o quarteto novamente para show no Lollapalooza Brasil, em março do ano que vem. Especula-se que ainda haverá uma apresentação final na cidade que, de acordo com o Spotify, mais escuta a banda no planeta. Ao que tudo indica, as portas estão abertas para que ex-integrantes participem.
Enquanto os parentes distantes não chegam, o cortejo fúnebre continua. E com classe raríssima no segmento da música pesada. Ninguém dos milhares de fãs presentes no Espaço Unimed parecia querer o encerramento do Sepultura. Mas já que vai acontecer, por que não transformar o enterro numa festa?
*O Sepultura volta a se apresentar no Espaço Unimed, em São Paulo, no próximo sábado (7) e domingo (8). Os ingressos estão esgotados. Para conferir a agenda completa de shows, clique aqui.
Sepultura — ao vivo em São Paulo
- Local: Espaço Unimed
- Data: 6 de setembro de 2024
- Turnê: Celebrating Life Through Death
- Produção: 30e
Repertório:
- Refuse/Resist
- Territory
- Propaganda
- Phantom Self
- Dusted
- Attitude
- Spit
- Kairos
- Means to an End
- Convicted in Life
- Guardians of Earth
- Mind War
- False
- Choke
- Escape to the Void
- Kaiowas (com Jean Patton, João Barone, Torture Squad, Yohan Kisser e mais)
- Dead Embryonic Cells
- Biotech is Godzilla
- Agony of Defeat
- Orgasmatron (cover de Motörhead)
- Troops of Doom
- Inner Self
- Arise
Bis:
- Ratamahatta
- Roots Bloody Roots
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A primeira parte da reportagem, resumindo a carreira da banda através da analogia da morte, está excelente… Fugiu do tradicional…
Parabéns ao autor…
Obrigado, Ricardo!
Não tive a oportunidade de ir a nenhum show dessa turnê, mas ler essa, e tantas outras matérias aqui realmente me faz sentir o calor do momento! Excelente matéria!