A história da reunião do Deep Purple em “Perfect Strangers”

Disco resultante de uma das voltas mais aguardadas do rock atesta química incomparável do quinteto inglês

Em 29 de junho de 1973, a formação do Deep Purple conhecida como Mark II tocou junta pela última vez. Após o quinto e derradeiro show da etapa japonesa da turnê mundial do não muito bom “Who Do We Think We Are”, lançado em janeiro daquele ano, o vocalista Ian Gillan e o baixista Roger Glover saíram da banda em meio a uma torrente de desentendimentos internos.

Pode-se dizer que tanto os dois como Ritchie Blackmore (guitarra), Jon Lord (teclados) ou Ian Paice (bateria) tiveram sucesso relativo em empreitadas pós-Purple, como Ian Gillan Band, Rainbow e frilas. Todavia, nenhum deles conseguiu alcançar sozinho o que haviam conquistado juntos.

- Advertisement -

Em 1984, o mundo do rock parou com a notícia de que os cinco estavam se reunindo para gravar um novo álbum e pretendiam continuar de onde o colosso Machine Head (1972) havia parado. Com vocês, “Perfect Strangers”.

Criatividade e egos no Deep Purple

Considerada a mais clássica e influente formação do Deep Purple, responsável por álbuns icônicos como “In Rock” (1970) e “Machine Head”, e por hits atemporais como Smoke on the Water e “Highway Star”, a Mark II surgiu após algumas mudanças cruciais na banda. Ian Gillan e Roger Glover se juntaram a Ritchie Blackmore, Jon Lord e Ian Paice em substituição aos cofundadores Rod Evans e Nick Simper, respectivamente, em 1969.

A entrada da dupla resultou em um som mais comercialmente bem-sucedido, mas não só isso, segundo Blackmore em conversa com a jornalista Sylvie Simmons:

“Acho que o momento mais criativo que já tivemos, a maior identidade que já estabelecemos, foi com essa formação.”

Com o sucesso, no entanto, vieram os egos inflados. Diferenças criativas e disputas por liderança, principalmente entre Blackmore e Gillan, se intensificaram, gerando um ambiente tenso nos bastidores. Além disso, a excruciante agenda de shows e gravações levou os membros da banda ao esgotamento físico e emocional.

Juntos entraram, juntos Gillan e Glover saíram em 1973, e o Purple continuou com David Coverdale e Glenn Hughes em seus lugares, gravando o aclamado Burn (fevereiro de 1974). Porém, insatisfeito com o álbum seguinte, “Stormbringer” (novembro de 1974), Blackmore partiu e formou o Rainbow. À Sounds, em 1985, ele explicou a saída:

“Deixei o Deep Purple porque queria seguir um caminho diferente; queria tocar com músicos diferentes e fazer um tipo de música similar, mas [também] senti que a banda em geral estava ficando despojada demais na época, em 1974, se arrastando em direção àquela coisa de soul/r&b, e eu pensava, ‘não, temos que continuar a ser rock ‘n’ roll’. Então eu saí.”

Seu substituto veio na figura de Tommy Bolin, com o qual a banda gravou “Come Taste the Band” (1975), seu último suspiro de estúdio na década de 1970.

Durante a turnê do supracitado disco em 1976, o Purple se separou. Cada um dos membros da derradeira formação seguiu caminhos distintos em suas carreiras — com direito a Coverdale, Lord e Paice tocando juntos por um período num dos muitos line-ups que teve o Whitesnake.

Os bastidores da reunião

Às vésperas do Natal de 1983, o empresário de Ritchie Blackmore, Bruce Payne, ligou para o empresário de Ian Gillan, Phil Banfield, para saber como estavam as coisas com o cantor. Payne sabia que Gillan tinha assumido o microfone no Black Sabbath, gravado o então recém-lançado álbum Born Again e caído na estrada para promovê-lo, mas queria sondar se uma reunião da formação Mark II valeria a pena — afinal, o guitarrista já havia começado a reunir material para um possível novo álbum do Purple.

Na verdade, o timing não poderia ter sido melhor para Gillan. Ele já via sua aventura com o Sabbath chegando ao fim — restavam menos de trinta shows a serem feitos entre janeiro e abril do ano seguinte —, o que significava, no mínimo, poder dar ouvidos a ideia.

Tendo sinal-verde de Gillan, Banfield passou algum tempo nos Estados Unidos com Payne, orquestrando a reunião. Inicialmente, seria um grande show único, mas depois passou a ser projetada como algo de longo prazo — desde que os músicos conseguissem trabalhar juntos sem se engalfinharem.

Ocupado com seu álbum solo “Mask”, cujas gravações estavam em andamento, Roger Glover pareceu reticente, mas concordou em conversar sobre. Quebrando um galho para Gary Moore depois de perder a vaga no Whitesnake para Cozy Powell, Ian Paice mostrou-se o mais disposto a tentar.

Jon Lord também topou, optando por sair do Whitesnake, no qual se sentia mero coadjuvante, assim que lhe fosse possível. A última apresentação do tecladista com a banda seria no Grand Hotel, em Estocolmo, Suécia, em 16 de abril de 1984 — performance incluída no CD + DVD “Live in ‘84: Back to the Bone” (2014).

“Partes iguais ou nada de reunião”

Os cinco músicos e os dois empresários se encontraram em Nova York para um jantar. Algumas horas depois, a formação Mark II do Deep Purple estava “on” novamente, mas nem todas as peças já estavam no lugar.

Com os calendários sendo esboçados para o início dos ensaios e das gravações, Payne anunciou que Blackmore estava exigindo 50% de todos os ganhos da reunião. Isso não agradou nem um pouco a Gillan, que relembrou a história em sua autobiografia homônima (Music Press, 2016).

“Eu disse a Phil para mandar Ritchie ir se f#der, que seriam partes iguais ou nada de reunião. Fiz isso sem consultar os outros, já ciente de que eles concordariam com o que quer que fosse decidido [por Blackmore].”

Blackmore finalmente cedeu e concordou em partes iguais para todos. Em março de 1984, o Rainbow fez seus três shows finais no Japão, encerrando a campanha de “Bent Out of Shape” (1983) com direito a orquestra. Com os rumores de uma reunião do Deep Purple Mark II já circulando na imprensa, a banda foi colocada em compasso de espera.

Em 27 de abril de 1984, o jornal londrino Evening Standard deu o furo, mas foi após o anúncio oficial feito por Tommy Vance em seu “Friday Rock Show”, da rádio BBC, que a notícia se espalhou: o Deep Purple estava de volta. O restante dos detalhes — um novo contrato com a gravadora Polydor, shows nos principais festivais de verão europeus e uma turnê mundial — seria revelado dias depois.

“Os anos 1970 ficaram para trás”

Os ensaios para o que se tornaria “Perfect Strangers” começaram como planejado — o primeiro sendo mágico, como Gillan contou a Vance (conforme transcrito pelo biógrafo do Deep Purple, Dave Thompson, em seu livro “Smoke on the Water” de 2004):

“A banda começou a tocar e a química entre nós era inegável. Era como se aquela formação sempre estivesse destinada a existir. Eu apenas me sentei e observei a magia acontecer. Jon chegou um pouco atrasado, como de costume, e se juntou aos outros. Ritchie começou a dedilhar as primeiras notas, Ian entrou na batida e Roger completou o som, com seu café e cigarro nas mãos. Nunca vou esquecer aquela jam session. Os arrepios percorriam meu corpo enquanto eu pensava: ‘Estes são os melhores músicos com quem já tive a oportunidade de trabalhar’.”

Mas os rumores de um adiantamento de US$ 2 milhões foram “grosseiramente exagerados”. Segundo o cantor em seu livro, “um valor próximo à metade seria mais realista. E a maior parte já estava comprometida com a produção do álbum e os custos iniciais da turnê.”

Apesar do evidente interesse financeiro envolvido, o grupo reiterou publicamente que a reunião tinha um propósito mais nobre. Conforme declarado por Lord à revista Sounds:

“Invariavelmente, nos perguntavam: ‘Por que vocês não se reúnem? Vocês vão ficar ricos!’ Verdade, mas essa não poderia ser a única razão. Se nos reuníssemos apenas pelo dinheiro, seria um desastre.”

Dito isso, uma questão crucial pairava no ar: como seria o tão aguardado retorno do Purple aos palcos? Em conversa com Tommy Vance, Paice ponderou a respeito.

“Os anos 1970 ficaram para trás. Não tocamos de forma diferente, mas as expectativas do público mudaram. Solos de guitarra e bateria imensos não funcionam mais. Naquela época, estávamos quebrando barreiras. Hoje, essas barreiras já foram derrubadas. Não queremos recriar o passado, seria errado.”

À Kerrang!, Glover acrescentou:

“A banda evoluiu e não podemos voltar no tempo. Não queremos ser uma cópia de nós mesmos. Mas se conseguirmos manter a mesma paixão e ousadia daquela época, teremos algo genuíno. E essa paixão se traduz nas seguintes palavras: ‘que se dane; faremos o que nos der na telha’.”

Uma vez finalizadas as gravações de seu álbum de retorno, o Deep Purple Mark II fez seu primeiro show oficial sem os tais solos de guitarra e bateria imensos em um pequeno clube em Hamburgo, na Alemanha. “Estávamos todos de muito bom humor”, assegurou o normalmente carrancudo Blackmore à Sounds.

“Perfect Strangers”, um “grande marco temporal”

Com um adesivo na capa do LP que dizia “O destino os uniu. Mais uma vez.”, “Perfect Strangers” foi lançado em 29 de outubro de 1984 e inevitavelmente seguido por uma extensa turnê, cujas primeiras datas foram na Austrália e na Nova Zelândia. Lord justificou o itinerário à Sounds: 

“Achamos que seria melhor começar bem longe. [Risos.] Se desse errado, estaríamos bem longe de casa, não é? Queríamos estar funcionando a todo vapor quando chegássemos à Europa e especificamente ao Reino Unido.”

O primeiro single extraído do álbum foi a faixa-título, cuja letra, como com a de “Stormbringer”, teria sido inspirada nos livros da saga “Elric of Melniboné”, mas os próprios fãs do escritor britânico Michael Moorcock não compram essa ideia.

Embora seja uma das únicas faixas do Deep Purple que não contém um solo de guitarra propriamente dito, “Perfect Strangers” é a canção do grupo de que Blackmore mais gosta. De acordo com o banco de dados Setlist.fm, é a terceira música mais tocada ao vivo pela banda, atrás apenas de “Smoke on the Water” e “Highway Star”.

Em janeiro de 1985, com o Purple excursionando em solo americano, o segundo e último single, “Knocking at Your Back Door”, alcançou a posição #61 no país — um resultado surpreendente para uma música sobre sexo anal. O letrista Gillan relembrou isso em depoimento ao autor Martin Popoff, reproduzido no livro “The Top 500 Heavy Metal Songs of All Time” (ECW Press, 2002): 

“Tem um cara chamado Redbeard, de uma estação de rádio no Texas. Ele me ligou depois que a música virou hit em todas as estações de rádio da América e perguntou: ‘[A letra] é sobre o que eu acho que é?’ E respondi que era. Daí ele disse: ‘Sensacional, todas as estações de rádio da América estão tocando uma música sobre sexo anal e não fazem a menor ideia!’.”

Com 1 milhão de cópias vendidas nos Estados Unidos — metade do número de “Machine Head” — e cerca de 3 milhões mundialmente, “Perfect Strangers” é definido por Paice à Kerrang!como “uma progressão natural em relação aos álbuns anteriores, mas com um período de dez anos de crescimento entre eles”.

Na mesma ocasião, Glover disse: 

“Alguém me falou outro dia que, ao ouvir ‘Perfect Strangers’, conseguia perceber todas as influências dos vários projetos em que estivemos envolvidos nesse período — Rainbow, Whitesnake, Gary Moore, seja lá o que for. Não sei se consigo perceber isso, mas estou completamente disposto a acreditar que seja verdade.”

Passados 32 anos da declaração acima, o baixista admitiu a Paul Rees, da revista Classic Rock, que “Perfect Strangers” foi “um grande marco temporal, mas, como álbum, não se sustenta por inteiro”.

Para este autor, além dos supracitados singles, “Perfect Strangers” oferece material forte e de indiscutível qualidade, como “Nobody’s Home”, que tem o DNA de “Fireball” (1971), a baladaça “Wasted Sunsets” e “A Gypsy’s Kiss”, que traz Blackmore e Lord em disparates virtuosos, duelando pelo protagonismo, assim como faziam no palco na década de 1970.

Vale mencionar, também, “Not Responsible”, música que ficou de fora das edições em vinil pura e simplesmente por falta de espaço no LP, e a faixa bônus exclusiva do CD “Son of Alerik”, uma instrumental de mais de dez minutos que remete às raízes sessentistas do grupo originalmente presente no maxi-single de “Perfect Strangers”.

E para quem pensou que a reunião do Purple duraria apenas um álbum e uma turnê, esse não foi o caso, já que um segundo trabalho, “House of Blue Light”, seria lançado em janeiro de 1987. Como dito por Blackmore:

“Ainda há uma grande — não direi ‘faísca’ porque é uma grande chama dentro da formação do Purple que temos; há uma química entre esses cinco indivíduos, algum tipo de ritmo; uma pulsação; e funciona. Isso ajuda.”

Deep Purple – “Perfect Strangers”

  • Lançado em 29 de outubro de 1984 pela Polydor
  • Produzido por Roger Glover

Faixas:

  1. Knockin’ At Your Back Door
  2. Under the Gun
  3. Nobody’s Home
  4. Mean Streak
  5. Perfect Strangers
  6. A Gypsy’s Kiss
  7. Wasted Sunsets
  8. Hungry Daze
  9. Not Responsible (faixa exclusiva das versões em K7 e CD)
  10. Son of Alerik (faixa bônus exclusiva das versões em CD posteriores a 1999)

Músicos:

  • Ian Gillan – vocais
  • Ritchie Blackmore – guitarra
  • Roger Glover – baixo e sintetizador
  • Jon Lord – teclados e órgão
  • Ian Paice – bateria

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Bluesky | Twitter | TikTok | Facebook | YouTube | Threads.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidadesA história da reunião do Deep Purple em “Perfect Strangers”
Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades