Embora o Kiss estivesse conquistando um público fiel em suas apresentações ao vivo, seu disco de estreia lançado em 21 de fevereiro de 1974 não foi um sucesso comercial. As cerca de 75 mil cópias vendidas mal deram para cobrir as despesas da banda.
Continuar na estrada se mostrou um fardo financeiro para todos os envolvidos. O empresário Bill Aucoin chegou a financiar as viagens com seu cartão de crédito, que acabou por ficar com limite estourado.
Neil Bogart, o presidente da Casablanca Records, estava farto e decidiu enviar Gene Simmons, Paul Stanley, Peter Criss e Ace Frehley a Los Angeles para começar a trabalhar no segundo álbum.
Na autobiografia “Não Me Arrependo” (Belas Letras, 2020), Ace relembra:
“Já estávamos na estrada há meses e não queríamos mais nada além de voltar para casa. Mas Neil nos queria mais perto dos escritórios da gravadora para que pudesse ficar de olho nas coisas.”
Esta é a história de “Hotter Than Hell”.
Rock instantâneo
Abrigado dentro de um templo maçônico em frente à praia de Santa Monica, o Village era a casa de artistas como Bob Dylan, Fleetwood Mac e os Rolling Stones, que gravaram parte de “Goats Head Soup” (1973) lá. Com Kenny Kerner e Richie Wise fazendo a produção novamente, foi o local alugado por Neil Bogart para o Kiss gravar no tempo recorde de um mês e meio.
Em depoimento ao biógrafo Ken Sharp reproduzido em “Nothin’ to Lose: A formação do Kiss (1972-1975)” (Benvirá, 2013), Kerner conta que o Kiss não gostou muito de Los Angeles.
“Eles não dirigiam, o que dificultava a movimentação por lá [risos]. A guitarra de Paul foi roubada no primeiro dia de gravação.”
O produtor sabia que “Hotter Than Hell” precisava mostrar alguma evolução. Todavia, afirma que o material no álbum não era tão forte.
“É a velha história: você tem a vida toda para compor músicas para seu primeiro álbum e seis meses para compor as que entrarão no segundo álbum.”
Paul relata que, por ser o primeiro disco em que ele e Gene não puderam se basear em material que tinha sido composto durante o ensino médio, havia muita pressão sobre eles.
“Tivemos anos para vasculhar todo o nosso material e definir o que sentíamos ser o melhor para o primeiro disco. Para o segundo, era rock instantâneo. Tivemos apenas alguns meses para compor as músicas.”
Bebendo em fontes conhecidas
A frase “a necessidade é a mãe da invenção”, atribuída ao filósofo Platão, traduz bem o processo de montagem em velocidade vertiginosa de “Hotter Than Hell”.
Do repertório de dez faixas, apenas “Watchin’ You” e “Let Me Go, Rock ‘N’ Roll”, que eram sobras do disco anterior que não haviam sido gravadas, já existiam antes do desembarque do Kiss em L.A. Para contornar a situação, oito músicas novas foram compostas no calor do momento, direto no estúdio, algumas bebendo em fontes conhecidas.
Grande fã do Free, Paul encontrou em “All Right Now” a inspiração para compor a faixa homônima ao disco. Já “Got to Choose” teve como base a versão de “Ninety-Nine and a Half (Won’t Do)”, de Wilson Pickett, gravada pelo Boomerang.
Em “Goin’ Blind”, cuja letra retrata um romance improvável entre gerações, Gene prestou homenagem a “Theme from an Imaginary Western” do Mountain, uma das suas músicas favoritas de todos os tempos. Segundo o baixista na autobiografia “Kiss: Por trás da maquiagem” (Belas Letras, 2021), o verso mais polêmico é obra do colega Paul.
“No meio da gravação, Paul irrompeu na cabine e sugeriu: ‘E se você cantasse ‘I’m ninety-three and you’re sixteen’?’ (‘Tenho 93 anos e você, 16’). Achei a ideia maluca, mas ele insistiu: ‘Não sei por quê, mas soa legal’.”
Ace trouxe duas músicas para o álbum, mas como não tinha confiança para cantar, “Parasite” acabou por trazer vocais de Gene e “Strange Ways”, de Peter. Na autobiografia “Não Me Arrependo”, o guitarrista revela que gostaria de ter tido coragem de cantar pelo menos a segunda.
“É uma música emocionalmente exigente, pesada e rítmica, com um ótimo solo de guitarra no meio. Era toda minha e eu deveria tê-la reivindicado para o disco. Mas eu não confiava em minha própria capacidade vocal, especialmente perto de Paul, Gene e Peter, que prosperavam sob os holofotes e tinham uma forma de defender uma música — qualquer música — independentemente de quaisquer limitações vocais (…) Você não pode subir lá e cantar se não acreditar em si mesmo. Eu sabia que era um bom guitarrista. Eu não tinha ideia se podia cantar. Então, por muito tempo eu sequer tentei fazer isso.”
Egos em colisão
Peter Criss não exigiu ter canções incluídas no disco, mas pressionou para cantar uma música específica da única maneira que sabia: ameaçando deixar a banda. Gene Simmons relembra:
“Ele tinha tentado isso conosco desde os primeiros dias em que se juntou à banda. Logo após nosso primeiro show, até o final, onde ele continuaria a ameaçar deixar a banda se não fizéssemos do jeito dele.”
O baterista teve seu desejo concedido. Entretanto, pelo que conta na autobiografia “Makeup to Breakup” (Editora Lafonte, 2013), gravar “Mainline” foi “uma tortura”.
“Paul ficou parado diante de mim, fazendo-me cantar palavra por palavra e nota por nota do jeito que ele queria (…) Paul não tinha alma.”
Outra demanda de Peter foi colocar um solo de bateria de sete minutos no meio de “Strange Ways”; algo que ele achou que seria bom para a música.
“Eu era um cara de solos. Gostava de executá-los, e ‘Strange Ways’ era o veículo perfeito para um (…) Gravei um solo realmente bom.”
Simmons e Stanley não compartilharam da opinião do colega. Apesar de terem-no gravado, quando ouviram a música, perceberam que o solo não só prejudicava a música, mas o álbum inteiro. Os dois disseram a Stanley que achavam que o solo deveria ser cortado. O baterista ameaçou deixar a banda de novo. Paul comenta na autobiografia “Uma Vida Sem Máscaras” (Belas Letras, 2015):
“Peter parecia ficar ressentido com qualquer coisa (…) Ele começou a descarregar seu caos interior e sua insegurança através de tentativas de fazer com que todos se sentissem tão mal quanto ele.”
O solo de bateria de “Strange Ways” caiu na sala de edição. De acordo com Gene, “a música soou melhor e Peter permaneceu na banda”. O baterista admite:
“Claro que [ameaçar sair da banda] era uma bravata. Só queria algum estímulo no processo.”
No meio do caminho tinha uma pedra
Na noite anterior à sessão de fotos para a capa de “Hotter Than Hell”, Ace se envolveu em um grave acidente de carro. Algo tinha irritado o guitarrista, que encheu a cara numa noite e resolveu ficar rodando por Hollywood Hills, como relembra em depoimento ao biógrafo Ken Sharp:
“Ficava dando voltas no quarteirão, dirigindo cada vez mais rápido [risos], até que perdi o controle e bati (…) Saí do carro, tinha cortado a testa, e sangue escorria pelo meu rosto.”
O guitarrista oferece mais detalhes em “Não Me Arrependo”:
“O impacto ainda foi grave o suficiente para que eu fosse catapultado para frente no para-brisa (…) Quando a poeira baixou, comecei a rir, um subproduto natural de quando se está bêbado e aliviado por estar vivo. No começo, eu tinha certeza de que não havia sido gravemente ferido — até sentir algo quente escorrer pelo meu rosto (…) Quando cheguei ao hotel, fui direto para o quarto do nosso gerente de turnê [Mike McGurl] (…) Ele não era de se assustar, mas quando abriu a porta e me viu ali, seus olhos se arregalaram.”
A Ken Sharp, McGurl conta não saber como Ace sobreviveu.
“No dia seguinte, juntei a equipe e fomos procurar o carro. Ele tinha capotado em um morro e havia caído cerca de 20 metros até bater numa pedra grande. Foi aquilo que evitou que rolasse até o fim do precipício (…) O carro estava completamente destruído. Era um Monte Carlo novinho em folha e estava [alugado] em meu nome. Tive de telefonar para a locadora para contar onde estava o carro deles [risos].”
Gene relembra que Ace havia sofrido um corte profundo em um dos lados do rosto, necessitando de pontos. Seguindo as recomendações médicas, ele não pôde usar maquiagem no lado ferido.
“Ace fez todas as fotos para a capa com apenas um lado do rosto maquiado. O departamento de arte precisou criar o outro lado do rosto.”
Kiss em transe
A supracitada sessão de fotos para “Hotter Than Hell” ocorreu nos estúdios Raleigh, em Hollywood. As fotos de capa e contracapa foram feitas no mesmo dia por Norman Seeff.
Neurocirurgião antes de se tornar fotógrafo, Seeff acreditava que, quando você tira fotos, precisa criar um ambiente. Gene Simmons conta que essa filosofia foi explicada ao Kiss pelo telefone. No entanto, até irem ao estúdio dele, os quatro não sabiam bem o que esperar.
“Quando chegamos lá, foi como entrar em outro mundo. Havia algumas garotas andando seminuas, cobertas de tinta prateada. Espelhos no teto e mobília suspensa com cabos. Era muito surreal, como ‘Além da Imaginação’.”
Em seu livro, Peter Criss define a sessão como “uma mistura de ‘Sonho de Uma Noite de Verão’ e ‘Satyricon’”.
“[Norman Seeff] havia contratado vinte mulheres e vinte homens para nos circundar num elaborado quadro vivo gótico medieval. Para lubrificar a cena, no set havia muito champanhe, uísque, rum; em suma, tinha de tudo ali (…) Sem dúvida, foi toda aquela bebida que estimulou o que se tornou mais uma orgia do que uma sessão de fotos.”
Todo mundo ficou bêbado. Menos Simmons, de acordo com o próprio.
“Paul ficou tão embriagado, que, no fim da sessão, tivemos que carregá-lo para fora e trancá-lo na traseira do nosso carro, para ele não se perder.”
Feitas as fotos, Seeff chamou John van Hamersveld, o designer responsável por “Exile on Main St.” (1972) dos Rolling Stones, para fazer a arte. Em “Nothin’ to Lose”, Van Hamersveld narrou o processo criativo que resultou numa das capas mais icônicas do Kiss:
“Imediatamente, pensei no arquetípico artista pop japonês Tadamori Yokoo e em seus pôsteres famosos feitos entre 1966 e 1968 (…) Criei todas as partes ao redor da fotografia. O disco prateado que serve como um fundo sólido deu força à imagem, separando a fotografia como uma vinheta. O polegar com unha verde na capa foi um desenho que fiz de meu próprio dedo (…) Quanto ao verso, para a imagem no centro combinei a maquiagem da banda para criar um logotipo simbólico que representasse o Kiss.”
O conceito da capa era tão complexo que deixou Paul perplexo. Mas ele reconhece:
“‘Hotter Than Hell’ foi uma capa incrível que realmente capturou a essência da banda. Foi a primeira vez que vi que tinha ido além das capas de discos norte-americanos típicas da época — que eu considerava muito sem graça. Eu era um grande fã dos álbuns britânicos e da arte que criavam, e a capa de ‘Hotter Than Hell’ me lembrou muito ‘Disraeli Gears’ [do Cream].”
O som do fracasso
“Hotter Than Hell” chegou às lojas em 22 de outubro de 1974 e, assim como seu antecessor, não conseguiu alcançar sucesso comercial, e seu single principal, “Let Me Go, Rock ‘N’ Roll”, passou longe de ser um hit nas rádios.
Mas a baixa expressão em vendas não foi o único problema: muitas vezes, o disco é apontado como tendo um som “cru” ou “não polido”, com uma sonoridade mais “amadora” em comparação a outros trabalhos do Kiss por alguns ouvintes e até por alguns integrantes da banda.
“Eu achava que tínhamos uma série de boas canções, mas o som não estava sendo captado”, escreve Peter, cuja bateria soa abafada e com pouca definição. Ace ecoa a insatisfação do colega:
“Nossos shows eram dinamite pura, mas ainda não tínhamos descoberto como traduzir aquele som no vinil. E eu ainda não havia entendido porque estávamos usando produtores caretas como Kerner e Wise quando podíamos ter contratado Eddie Kramer.”
Richie Wise admite que ele e Kenny Kerner não conseguiram o som correto e assume toda a responsabilidade pelo fracasso de “Hotter Than Hell”.
“Odiei o som daquele álbum. Juro por Deus, dia sim, dia não, havia dois alto-falantes novos na sala. Eles os trocavam a toda hora porque estavam com problemas (…) Nunca gravei um som tão ruim. Eu me sentia tolhido e sem liberdade. Não conseguíamos fazer com que a mixagem produzisse o som correto. Eu sabia que estava numa enrascada com aquele disco depois da mixagem. Eu adoraria ter remixado ele inteiro em um estúdio diferente, mas era tarde demais.”
A turnê de “Hotter Than Hell” teve início com o disco ainda nas prensas, em 16 de outubro. Seriam 49 datas nos Estados Unidos e quatro no Canadá. Muitos desses shows tiveram abertura do Rush, e as bandas forjaram amizade e camaradagem duradouras.
Em 1º de fevereiro de 1975, durante um show no Santa Monica Civic Auditorium, onde o Kiss estava se apresentando com Jo Jo Gunne e Yesterday and Today (que mais tarde se tornaria Y&T), Bogart foi aos bastidores e informou à banda que “Hotter Than Hell”, que havia ultrapassado as 100 mil cópias vendidas, tinha parado de vender, e que os quatro teriam que voltar para Nova York para gravar seu terceiro álbum.
Só que desta vez, ele seria o produtor. E era bom que ali houvesse um hit.
Kiss – “Hotter Than Hell”
- Lançado pela Casablanca Records em 22 de outubro de 1974
- Produzido por Kenny Kerner e Richie Wise
Faixas:
- Got to Choose
- Parasite
- Goin’ Blind
- Hotter Than Hell
- Let Me Go, Rock ‘N’ Roll
- All the Way
- Watchin’ You
- Mainline
- Comin’ Home
- Strange Ways
Músicos:
- Gene Simmons (baixo e vocais)
- Paul Stanley (guitarra base e vocais)
- Peter Criss (bateria e vocais)
- Ace Frehley (guitarra solo, baixo na faixa 2, backing vocals nas faixas 2, 9 e 10)
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Excelente matéria!
Agora eu gostaria de matérias como essas para os demais álbuns, fiquei mal acostumado. kk
Continue com o bom trabalho! \,,/